Acervo do Museu do Colono, Santa Leopoldina, Espírito Santo, Brasil – Secretaria de Estado da Cultura, Estado do Espírito Santo, Brasil – Abril 2022- Foto: Edson Chagas| Foto: Edson Chagas/Creative Commons
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Historicamente, nenhuma outra força social posicionou-se de forma mais firme contra a cultura da morte em geral e o aborto em particular do que a Igreja Católica. Eis por que os propagandistas do aborto esforçam-se tanto por encontrar inconsistências nesse posicionamento, chegando mesmo a inventá-las quando não as encontram. Efetivamente, não se deve esperar ética daqueles que defendem uma bandeira ideológica profundamente imoral e desumana: o que é mentir para quem já está disposto a matar crianças? Ademais, por outra razão os abortistas distorcem o ensinamento moral da Igreja a respeito do aborto. Nas palavras de Frances Kissling, ex-presidente do grupo abortista Catholics for Choice, financiado pelos projetos neomalthusianos da Fundação Rockefeller: "A moral católica é a mais desenvolvida. Se você puder derrubá-la, derrubará por consequência todas as outras". Não obstante, o que se pode colher da história do posicionamento moral da Igreja sobre o aborto são, como veremos, dois milênios de coerência e de humilde submissão à verdade dos fatos.

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Ao contrário das divindades politeicas dos diversos paganismos, cuja indiferença ética é criticada por Platão no Eutífron e nos primeiros livros de A República, o Deus cristão é um deus moralista: ele está especialmente preocupado com o comportamento de seus súditos. "Quem subirá até o monte do Senhor, / quem ficará em sua santa habitação? / Quem tem mãos puras e inocente coração, / quem não dirige a sua mente para o crime, / nem jura falso para o dano de seu próximo" (Sl 23,3-4). A prática moral, para o Deus cristão, é uma forma de culto e o próprio culto, em seu sentido estrito, não tem valor se não vier acompanhado da moral: "Nem todo o que me diz: Senhor, Senhor, entrará no Reino dos céus; mas o que faz a vontade de meu Pai, que está nos céus, esse entrará no Reino dos céus" (Mt 7,21). E ainda: "Bom Mestre, que devo fazer para obter a vida eterna? Jesus respondeu-lhe: Por que me chamas bom? Ninguém é bom senão só Deus. Tu conheces os mandamentos: Não matarás, não cometerás adultério, não furtarás, não dirás falso testemunho, honra teu pai e tua mãe" (Lc 18,18-20).

O cristianismo é uma religião sobrenatural assentada sobre a religião natural, uma religião revelada apoiada sobre a religião demonstrável. Assim, aquilo que se convencionou chamar de moral católica tem duas partes: uma se refere ao exercício das virtudes teologais (fé, esperança e caridade) e ao uso dos sete sacramentos. Essa é a parte propriamente cristã e sobrenatural: não se chega ao conhecimento dessa parte da moral sem a adesão à Revelação, amparada pela luz da graça. A outra parte, por sua vez, consiste fundamentalmente na lei natural comum a todos os homens, sejam eles cristãos ou não, expressa nos Dez Mandamentos.

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A sociedade não se pode manter sem que todos observem rigoroso respeito pela vida do semelhante, respeito esse que constitui, pois, um bem comum e necessário

A lei natural é o conhecimento do certo e do errado que todo o homem tem e que se manifesta na consciência de cada um. Todo o ser humano sabe, por exemplo, que não deve matar ou roubar. Esse conhecimento faz parte da lei natural. Essa lei natural nada mais é que um desenvolvimento e um desdobramento da apreensão do conceito de bem pela razão prática. O homem, como o definiu Aristóteles, é o animal racional, o animal dotado da potência da razão. Dessa razão, o homem pode fazer dois usos: um uso teórico ou especulativo, para conhecer a verdade, ou seja, apreender o ser das coisas; e um uso operativo ou prático, para dirigir os próprios atos e decisões. O conceito fundamental da razão teórica é o de ser. A razão teórica desdobra o conceito de ser nos seus primeiros princípios lógico-ontológicos, que são pressupostos por todas as ciências e todo o conhecimento humano: identidade, não-contradição, terceiro excluído e razão suficiente.

A razão prática apreende o ser sob o conceito de bem: o bem é o ser enquanto apetecível. Ora, se o bem é o apetecível enquanto tal, logo o bem deve ser apetecido e o mal, seu contrário, deve ser evitado. Fazer o bem e evitar o mal: este é o princípio primeiro e universalíssimo da razão prática e da lei natural. Não obstante, esse primeiro princípio talvez seja demasiado universal para servir de norma de moralidade. O bem deve ser feito, isso é evidente, mas o que é o bem? A experiência e a educação oferecem matéria à aplicação desse princípio universalíssimo, de modo a tirarmos dele conclusões próximas ou princípios secundários, que constituem as normas da lei natural. Assim, entendemos que roubar é mau, logo não devemos fazê-lo; honrar os pais é bom, logo devemos praticá-lo. Das conclusões próximas da lei natural é possível ainda extrair conclusões remotas. Entretanto, tais conclusões remotas já não são tão claras para a inteligência da maior parte dos homens, ao contrário do que ocorre com as conclusões próximas.

Parece bastante evidente que a vida humana seja um bem: um bem tal que, sem ele, não poderíamos gozar de nenhum outro. Ademais, o homem é, por natureza, um animal social; sem o concurso da sociedade, o indivíduo humano não pode atingir o fim para que está naturalmente ordenado. A sociedade, por sua vez, não se pode manter sem que todos observem rigoroso respeito pela vida do semelhante, respeito esse que constitui, pois, um bem comum e necessário. Portanto, não matar o inocente é uma necessidade prática, uma das conclusões próximas ou princípios secundários da lei natural. Todavia, uma ulterior conclusão lógica desse princípio, a proibição do aborto, dado que não há diferença moral entre matar um ser humano antes de nascer e depois que ele nasça, muitas vezes foi obscurecida pela malícia, pela paixão e pela ignorância humana.

De qualquer maneira, para ser contra o aborto não é preciso ser católico, não é preciso Bíblia, não é preciso Igreja: basta ser gente. A proibição do aborto é uma simples conclusão daquela lei natural que o Criador promulgou na consciência de cada indivíduo humano que chega à idade da razão. Não obstante, a Igreja ensina que, para que todos conhecessem os preceitos da lei natural com clareza, facilidade e segurança, Deus os confirmou e promulgou também em sua Revelação, especialmente no Decálogo. Ademais, a luz sobrenatural da graça ajuda a compreender mais bem os preceitos da lei natural em seu sentido e em suas consequências, da mesma forma como um conhecimento superior ilumina um conhecimento inferior. Como resumem os versos de Lourival dos Santos, cantados por Tião Carreiro & Pardinho: «Quem segue o Livro de Deus / apura a lei da razão».

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E um exemplo magnífico dessa clareza trazida pelo cristianismo ao conhecimento da lei natural e de suas conclusões está na constante repugnância que a Igreja nutriu, desde os inícios de sua história, contra o abominável crime do aborto. Isso porque, desde o princípio, os cristãos compreenderam que o preceito ético de “não matar”, integrante da lei natural e confirmado tanto pelo Antigo como pelo Novo Testamento (cf. Ex 20,13; Dt 5,17; Mt 5,21; Lc 18,20), protegia também aquele que estava no ventre materno.

1. O aborto nos primeiros séculos do cristianismo

Os escritos dos cristãos dos primeiros séculos estão repletos de passagens que desaprovam o aborto, desde a primeira geração do cristianismo. O mais antigo documento cristão que condena a prática do aborto é a Διδαχὴ τῶν δώδεκα ἀποστόλων (Doutrina dos Doze Apóstolos), uma espécie de catecismo primitivo, feito por alguém que compilou alguns dos ensinamentos orais dos Apóstolos às primeiras comunidades cristãs. Esse documento refere-se ao aborto nos seguintes termos: «Não matarás uma criança por aborto, nem depois que ela tenha nascido» (2,2: οὐ φονεύσεις τέκνον ἐν φθορᾷ οὐδὲ γεννηθὲν ἀποκτενεῖς), aqueles que matam crianças são «destruidores da imagem de Deus» (5,2: φθορεῖς πλάσματος Θεοῦ). A Διδαχή, ou Doutrina dos Doze Apóstolos, inaugura a perspectiva genuinamente cristã sobre o problema do aborto, que o considera do ponto de vista da criança nascitura, equiparando o aborto ao homicídio.

A epístola atribuída a São Barnabé, mas que parece posterior à morte do apóstolo, sendo datada por volta do ano 135, expressa a mesma perspectiva: «Não mates a criança no seio da mãe, nem logo que ela tiver nascido» (19,5).

Ainda no século II, o apologista Atenágoras de Atenas, ao defender os cristãos da calúnia de homicidas e canibais (visto que comiam a carne e bebiam o sangue de Jesus), escreve em petição dirigida ao imperador Marco Aurélio, que reinou entre 161 e 180: «Afirmamos que as mulheres que tentam o aborto cometem homicídio e terão de dar contas a Deus por ele; então, por que iríamos matar alguém? Não se pode pensar que aquele que a mulher leva no ventre é um ser vivente e, objeto, consequentemente, da providência de Deus e em seguida matar aquele que já tem anos de vida; não expor o nascido, crendo que expor os filhos equivale a matá-los, e tirar a vida ao que já foi criado. Não! Nós somos em tudo e sempre iguais e concordes com nós mesmos, pois servimos à razão e não a violentamos» (Petição em Favor dos Cristãos, in I. Storniolo – E. Balancin, Padres Apologistas, São Paulo, 1995. Vol. 2 da col. Patrística, p. 163).

Minúcio Félix, advogado cristão que viveu entre os séculos II e III, no capítulo XXX de seu diálogo Otávio, reprova os pagãos que «expõem cruelmente seus filhos recém-nascidos e, antes de nascerem, os destroem por meio de um aborto cruel».

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No século III, o bispo São Cipriano de Cartago, em sua carta de n. 52, dirigida ao papa São Cornélio, ao tratar dos crimes do presbítero cismático Novato, narra que esse tal «golpeou com um pontapé o ventre de sua mulher grávida, a mulher abortou e assim o parto converteu-se em parricídio» (in Obras Completas de San Cipriano de Cartago I, Madrid, 2013. p. 622), equiparando a morte do nascituro à de um homem feito.

Ainda no século III, também Santo Hipólito, Clemente de Alexandria, Tertuliano e Lactâncio testemunham que a Igreja sempre condenou o aborto desde o seu princípio, nos mais veementes termos.

No século IV, o bispo São Zeno de Verona ataca o aborto como produto da avareza: «amicæ sub fallacia manus innoxias animas secure conficit ebibita veneni tempestas: sepelitur nova odii rabie antequam nascatur matris jam non in utero, sed sepulcro incognitum pecus, quod legitimam nec mortem potuit sentire, nec vitam» (“pela traição de uma mão amiga, uma tempestade bêbada de veneno elimina com segurança almas inocentes; um rebanho desconhecido, que não pôde ter legítima nem morte nem vida, por raiva de ódio, é sepultado antes de nascer, não mais no útero de sua mãe, mas no sepulcro” - Patrologia Latina XI, p. 326).

São Basílio Magno, bispo de Cesareia de Capadócia, é o primeiro autor eclesiástico que conhecemos a fazer referência à tese da animação fetal diferida (pela qual a alma é infundida no corpo em momento posterior à concepção), mas para descartá-la na prática. Em 374, respondendo a uma consulta de Santo Anfilóquio, bispo de Icônio, sobre os cânones a adotar em sua diocese, escreve o seguinte: «Quæ de industria fœtum corrupit, cædis pœnas luit. De formato autem aut informi subtilius non inquirimus. Hic enim non id modo, quod nasciturum erat, vindicatur, sed etiam illa ipsa, quæ sibi insidias paravit, quoniam ut plurimum intereunt in ejusmodi inceptis mulieres. Huc autem accedit et fœtus interitus, cædes altera, saltem si consilii eorum qui hæc audent, ratio habeatur» (“Quem de propósito matar o feto incorre nas penas do assassinato. Não pesquisamos sutilezas a respeito de se o feto está animado ou informe. Aqui não se trata somente do nascituro, mas também daquela que preparou ciladas contra si mesma, visto que muitíssimas mulheres morrem em tentativas semelhantes. A isso se soma também a morte do feto, que constitui outro crime, ao menos se se considerar a intenção dos que ousam fazer tais coisas” – Epístola n. 188, cânon 2).

São Gregório de Nissa, irmão de São Basílio, descarta a tese da animação fetal diferida, não apenas sob o aspecto prático, mas também do próprio ponto de vista teórico e científico: «Nenhuma pessoa dotada de juízo são discutirá se a origem das almas é anterior ou posterior à formação de seus corpos, pois que, ante a clarividência dos fatos, nenhum ser inanimado possui o poder de se mover e crescer» (De opificio hominis, cap. XXIX, publicado em trad. de B. S. Santos, A Criação do Homem, São Paulo, 2011. V. 29 da col. Patrística, pp. 146-50).

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São Jerônimo, por sua vez, em sua carta de n. 22, endereçada a Santa Eustóquia, datada do ano 384, manifesta-se contra o aborto nos termos mais enérgicos: «Algumas, quando percebem terem concebido ilicitamente, recorrem aos venenos do aborto e frequentemente elas próprias também morrem, sendo levadas ao inferno como rés de três crimes: homicidas de si mesmas, adúlteras do Cristo e parricidas do filho não nascido» (in Obras completas de San Jerónimo Xa, Madrid, 2013. pp. 177-9).

São João Crisóstomo, arcebispo de Constantinopla entre 397 e 407, na sua 24ª homilia sobre a Epístola aos Romanos,critica os homens que incitam mulheres a praticar aborto: «Não deixas a meretriz continuar apenas meretriz, mas a transformas em homicida. Viste que da embriaguez se originou a fornicação, da fornicação o adultério, do adultério o assassinato? Ou antes algo de pior que o assassinato. Não sei que nome lhe dar. Não só mata o que nasceu, mas o impede de nascer. E então? Ultrajas o dom de Deus, combates as suas leis, e procuras obter como bênção o que é maldição. Ao seio da geração transformas em cofre mortal, e à mulher, que te foi dada para a procriação da prole, instruis a cometer assassinato?» (Comentário às Cartas de São Paulo/1, São Paulo, 2010. Vol. 27/1 da col. Patrística, pp. 439-40).

2. Santo Agostinho e a tese da animação fetal tardia

Santo Agostinho, que viveu entre 354 e 430 e foi bispo de Hipona de 395 até sua morte, foi o verdadeiro fundador da teologia ocidental, latina. Não obstante, é ele quem vai introduzir um complicador na reflexão teológica sobre o aborto. Induzido a erro por um equívoco na tradução da Bíblia Sagrada e influenciado pela filosofia platônica, Agostinho adota a tese da animação fetal diferida ou tardia, que vai impactar a reflexão sobre a moralidade do aborto, de acordo com as fases da gestação, sem jamais constituir, no entanto, escusa para praticá-lo.

A única passagem da Bíblia que se refere explicitamente ao aborto é Êxodo 21,22-23: «Se alguns homens renhirem, e um deles ferir uma mulher grávida, e for causa que ela aborte, mas não morrendo, será obrigado a ressarcir o dano segundo o que pedir o marido da mulher e os árbitros julgarem. Mas, se se seguiu a morte dela, dará vida por vida». Trata-se aqui, claramente, do aborto culposo, ou seja, praticado sem dolo, não feito de propósito. Se dois homens brigarem e, nessa briga, acabarem por ferir uma mulher grávida, de modo que ela perca seu filho, deverão indenizar a família. Se, porém, causarem a morte da mulher, o responsável pagará com a vida.

Ocorre que Ptolomeu II Filadelfo, rei do Egito entre 282 e 246 antes de Cristo, teria encomendado a setenta sábios judeus uma tradução das Escrituras Hebraicas para o grego, a fim de completar a famosa Biblioteca de Alexandria. Essa tradução ficou conhecida como a Versão dos Setenta ou, em latim, Septuaginta. E justamente nesses versículos do capítulo 21 do Êxodo, os Setenta substituíram a palavra hebraica “ason”, que significava a morte da mãe, pela palavra grega ἐξεικονισμένον, que quer dizer “formado”, alterando radicalmente o sentido da passagem, que passou a ser lida assim: «Se alguns homens renhirem, e um deles ferir uma mulher grávida, e for causa de que ela aborte uma criança não formada, será obrigado a ressarcir o dano segundo o que pedir o marido da mulher e os árbitros julgarem. Mas, se estiver formada, dará vida por vida». A tradução dos Setenta, portanto, deslocou a preocupação central da passagem que, no texto original, era saber se, além do aborto, a agressão também causou ou não a morte da mãe, conforme o que variava a pena, para saber se a criança abortada estava formada ou não: se a criança ainda não estivesse formada, o agressor deveria pagar uma indenização; se estivesse formada, pagaria a vida dela com a sua.

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A versão dos Setenta é muito respeitável, o Novo Testamento faz referência constante a ela e de fato em alguns pontos ela é mais esclarecedora que as Escrituras Hebraicas. Não obstante, ela não é isenta de erros, como pudemos comprovar. O erro a que fizemos referência foi depois corrigido por São Jerônimo quando este compôs a sua Vulgata, que se tornou na Igreja a tradução oficial da Bíblia para o latim. No entanto, o estrago já estava feito.

Quando Santo Agostinho comentou o livro do Êxodo, em suas Questões sobre o Heptateuco, ele não usou a Vulgata de São Jerônimo, que talvez não lhe estivesse disponível na ocasião, mas outra tradução latina, feita a partir da versão dos Setenta. E foi assim que esse erro de tradução entrou na teologia católica. Ao comentar Êxodo 21,22, diz Agostinho: «O fato de que o autor não tenha querido que pertença ao homicídio o parto não formado demonstra que pensou não ser homem o que é gerado no útero materno. Aqui se costuma agitar a questão da alma, se o que não está formado tampouco pode-se entender que esteja animado e, por isso, que não seja homicídio, porque não se pode afirmar que possa ser privado de alma um ser que ainda não tem alma» (in Obras completas de San Agustín XXVIII, Madrid, 1989. p. 237).

E foi assim que a tese da animação diferida entrou na teologia católica, a partir de um erro de tradução da Bíblia dos Setenta. Além disso, a influência da filosofia platônica pode ter contribuído para que Agostinho incorresse nesse erro. Isso porque, ao contrário de Aristóteles, para quem a alma é a forma substancial do corpo, para Platão a união da alma com o corpo é extrínseca ou até violenta: o corpo não formaria com a alma uma unidade substancial. O corpo seria um instrumento extrínseco da alma, como a casa em relação a seu morador. E, concluíam os filósofos platônicos, não seria razoável introduzir na casa o morador antes que ela estivesse pronta.

Aristóteles, a quem Diógenes Laércio chamou «o discípulo mais autêntico de Platão» (Vidas e Doutrinas dos Filósofos Ilustres, l. V, c. 1, 1), vai corrigir o erro filosófico de seu mestre, na medida em que compreendeu que alma espiritual e corpo material formavam no ser humano uma unidade substancial, intrínseca. Não obstante, Aristóteles continuou apegado à tese da animação fetal diferida porque definia, corretamente aliás, a alma como sendo «a forma substancial do corpo organizado com potência à vida». Como fossem na época de Aristóteles desconhecidos os precisos instrumentos científicos modernos, entre os quais o microscópio, ele não tinha noção da complexidade orgânica do zigoto humano, para admitir que estivesse apto a receber a alma espiritual como forma substancial desde o instante mesmo de sua concepção. Tudo o que ele podia observar, a olho nu, era uma massa informe. Ele identificava o momento em que essa massa informe passava a corpo organizado quando se observavam os primeiros movimentos do feto, pois é vivente o que é capaz de mover-se. Esses primeiros movimentos, de acordo com suas observações, dar-se-iam por volta dos quarenta dias de gestação, quando se tratasse de um menino, ou dos noventa dias, para as meninas (cf. Historia animalium, 583b). A partir desse momento, era certo que se tratava de um feto animado e, portanto, sua eliminação seria um homicídio.

Curioso é que a distinção, tão importante para a filosofia grega, entre feto animado e não animado, era ignorada pelo direito romano: «Considera-se como já nascido aquele que ainda se acha no seio materno, todas as vezes que se trata do seu interesse» (D. 1,5,7). «Ingênuos são os que nascem de mãe livre. Basta que ela seja livre ao tempo do nascimento, embora fosse escrava quando concebeu; e, pelo contrário, se concebeu sendo livre e deu à luz depois de reduzida à escravidão, determinou-se que o feto nascesse livre» (D. 1,5,5,2, grifo nosso). «Os que ainda estão no ventre materno são, em quase todo o direito civil, considerados como já nascidos» (D. 1,5,26). Ocorre que o pátrio poder dava ao pater familias (pai de família) romano o jus vitæ et necis (direito de vida e morte) sobre os filhos, inclusive os já nascidos. Como assinalou Gaio, jurista romano, «nenhum outro homem tem sobre os filhos um poder semelhante ao nosso».

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É possível, aliás, que o próprio erro de tradução que inseriu na Bíblia a distinção entre feto animado e inanimado tenha sido cometido por influência da filosofia grega. Não se pode omitir que Alexandria, onde foi feita a versão dos Setenta, era o ponto de encontro entre o judaísmo e o platonismo

O fato é que, depois de Agostinho, duas teses passaram a ser discutidas na teologia católica a respeito da animação fetal: a tese da animação imediata ou instantânea, defendida por São Basílio e São Gregório de Nissa, e a tese da animação tardia ou diferida, apoiada por Santo Agostinho. É preciso que se diga, porém, que a tese da animação imediata prevaleceu durante toda a época patrística, até Santo Agostinho, e mesmo depois dele, como iremos ver. De fato, a tese agostiniana só vai prevalecer a partir do século XIII.

Ademais, Santo Agostinho jamais usou a tese da animação tardia para justificar ou tolerar o aborto antes da animação. Na prática, a discussão teórica sobre a animação fetal era irrelevante, porque o aborto permanecia de qualquer jeito um pecado odioso e abominável. Assim, Agostinho repudiava tanto a contracepção quanto o aborto, quer de feto formado, quer não formado: «Às vezes chega a tanto essa libidinosa crueldade ou, se se prefere, libido cruel, que empregam drogas esterilizantes, e, se estas resultam ineficazes, matam no ventre materno o feto concebido e o lançam fora, preferindo que sua prole se desvaneça antes de ter vida, ou, se já vivia no útero, matá-la antes que nasça» (De nuptiis et concupiscentia, c. XV, in Obras completas de San Agustín XXXV, Madrid, 1984. p. 269). Outra não poderia ser a conclusão, visto que, em perigo de vida do próximo, manda a razão prática seguir na dúvida sempre a tese mais segura: assim como o caçador não pode disparar quando duvida se o objeto percebido ao longe é um animal selvagem ou uma criança.

Os pecados, mesmo os mais graves, não têm obviamente a mesma gravidade: matar é muito mais grave que roubar e matar a própria mãe é pior que matar um estranho. Assim também, pelos textos de Santo Agostinho, entende-se que ele julgava ser um pecado grave a esterilização; um pecado gravíssimo abortar a criança já concebida, mas ainda em formação; e um pecado ainda mais grave, sem diferença com o homicídio, matar no ventre a criança já formada. Esse entendimento foi sustentado pelos defensores da tese da animação fetal diferida, até que no século XIX ela perdeu sua credibilidade, tendo em vista os novos dados da ciência biológica.

3. A disciplina canônica e penitencial do aborto no primeiro milênio do cristianismo

No primeiro milênio do cristianismo, a Igreja era bem mais descentralizada do que é hoje. Existia como agora uma só fé e uma só moral, reconhecia-se o primado espiritual do bispo de Roma, o papa, como sinal visível dessa unidade, mas praticamente cada diocese tinha a sua liturgia, a sua disciplina e o seu direito canônico particular. Era também comum que os bispos de dioceses contíguas se reunissem em sínodos ou concílios particulares (distintos dos concílios ecumênicos, em que as questões de fé eram definidas) para elaborar e promulgar cânones válidos para a toda a sua região ou província eclesiástica. Todavia, nessa multidão de cânones promulgados pelos bispos em suas dioceses ou em concílios particulares, nunca os historiadores encontraram um só que permitisse o aborto, em qualquer fase da gestação.

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Em primeiro lugar, as fontes disponíveis apontam que a disciplina canônica primitiva da Igreja era tão rigorosa que quem abortasse só poderia voltar a receber a comunhão sacramental na hora da morte, como registra o II Concílio de Braga: «has tales mulieres in morte recipere communionem priores canones decrevere». O Concílio de Elvira, celebrado na Espanha no começo do século IV, chegou a determinar que mesmo na hora da morte não se lhes fosse dada a comunhão, conforme seu cânon 63: «neque in fine dandam esse communionem».

Essa rigorosa disciplina começou a ser mitigada com o Concílio de Ancira ou Ancara, celebrado no ano de 314, no território da atual Turquia. Em seu cânon 20, esse concílio permitiu que aqueles que tivessem provocado voluntariamente o aborto fossem readmitidos à comunhão depois que passassem dez anos fazendo penitência: «De mulieribus quae fornicantur et partus suos necant, vel quæ agunt secum, ut utero conceptos excutiant, antiqua quidem definitio usque ad exitum vitæ eas ab Ecclesia removet. Humanius autem nunc definimus, ut eis decem annorum tempus secundum præfixos gradus pœnitentiæ largimur».

Apesar de ter sido um concílio particular, o de Ancira tornou-se referência para a disciplina canônica de toda a Igreja nos séculos seguintes, no que tange à questão do aborto. Pressupunha a tese da animação fetal imediata, prevalecente nos primeiros séculos do cristianismo, e, por isso, não fazia distinção alguma em relação aos estágios de desenvolvimento do nascituro.

Na península Ibérica, o Concílio de Lérida, celebrado no ano de 546, em seu 2º cânon, dispunha que homens e mulheres que tivessem participado de um aborto, sem importar o tempo da gestação, só poderiam receber a comunhão sacramental depois de terem feito sete anos de penitência: «post septem annorum curricula, communio tribuatur». Ainda assim, o concílio recomendava que, mesmo depois de serem novamente recebidos à comunhão, continuassem a fazer penitência pelo resto de suas vidas: «ita tamen ut omni tempore vitæ suæ, fletibus et humilitati insistant». Os clérigos que tomassem parte nesse pecado perderiam para sempre seu ministério: «Si vero clerici fuerint, officium eis ministrandi recuperare non liceat».

O II Concílio de Braga, celebrado em Portugal em 572 e presidido por São Martinho de Dume, determinou, sem fazer distinção quanto à idade do feto, que tanto a mulher que praticasse aborto como seus cúmplices devessem cumprir dez anos de penitência: «ex decem annis agere pœnitentiam judicamus». Ainda na península Ibérica, o III Concílio de Toledo, celebrado no ano de 589, em seu cânon 17, também previu penitência para o aborto.

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Na Inglaterra, São Teodoro, que foi arcebispo de Cantuária entre 668 e 669, determinou que aqueles que fizessem uma mulher abortar cumprissem três anos de penitência a pão e água, para que não se tornassem réus de homicídio: «si per hoc mulieri partum deceperit quisque tres annos unusquisque superaugeat in pane et aqua, ne homicidi reus sit». Santo Egberto, que foi arcebispo de Iorque entre 732 e 766, dispôs que a mulher que abortasse ou que matasse o filho depois de nascido fizesse a mesma penitência de dez anos, três deles a pão e água: «Si mulier quædam infantem intra se occidat potu vel aliis rebus, vel deinde postquam genitus sit occidat, jenet decem annos; tres in pane et aqua, et septem prouti confessarius misericorditer ei præscribere velit». Em ambas as determinações canônicas não há preocupação com a idade gestacional.

No Oriente, o Concílio Quinissexto, celebrado em Constantinopla no ano de 692, estribado na doutrina dos santos Basílio e Gregório de Nissa, em seu cânon 91 equiparava o aborto ao homicídio, sem discutir o tempo da gestação: «Eas quae dant abortionem facientia medicamenta et quæ fœtus necantia venena accipiunt homicidæ pœnis subjicimus».

Aparentemente, até o século VIII, a tese agostiniana da animação fetal diferida ainda não havia impactado a disciplina canônica da Igreja, pois o papa Gregório III, no ano de 731, determinava que a mulher que abortasse, mesmo antes dos quarenta dias de gestação, fizesse penitência como homicida: «Mulier quæ concepit et occidit filium aut filiam in utero ante quadraginta dies, homicida pœniteat».

Na França, Teodulfo, que foi bispo de Orleães entre 798 e 818, segundo o uso comum da Igreja católica naquele tempo, determinou que a mulher que praticasse o aborto fizesse penitência por dez anos, mas facultou aos sacerdotes admiti-la à comunhão sacramental antes desse termo, conforme os frutos de penitência e arrependimento que mostrasse. Não importava o tempo da gestação.

Na Alemanha, o Concílio de Mogúncia, reunido em 847, equiparou o aborto ao homicídio «porque não existem meios que permitam fazer distinção entre a morte de um homem adulto e a de um ser no período em que este se encontra nas mãos do Criador em caminho de vir à luz». O Concílio de Vórmia, de 868, em seu cânon 30, teve a mesma opinião: « Mulieres igitur, quæ ante temporis plenitudinem conceptos utero infantes voluntate excutiunt, ut homicidæ procul dubio judicandae sunt».

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Em nenhuma das fontes canônicas que pudemos consultar, a distinção entre feto animado ou inanimado foi relevante sequer para variar a penitência a ser realizada pelo pecado. Destarte, podemos concluir que, no primeiro milênio do cristianismo, a tese da animação fetal diferida ou tardia não impactou a disciplina canônica da Igreja no que se relaciona com o aborto.

Nessa mesma época (segunda metade do primeiro milênio), surgiram os chamados livros penitenciais, destinados a orientar os padres confessores no exercício de seu ministério. Esses livros traziam listas de pecados, com as penitências apropriadas para cada um, segundo a sua espécie. Difundiram-se pela Idade Média até serem suplantados por reflexões mais sistemáticas da teologia moral. É nesses livros penitenciais que a tese da animação fetal diferida começa a ter relevância na prática e isso apenas a partir do século VIII. Vejamos agora como o aborto foi tratado pelos livros penitenciais.

Os penitenciais de São Columbano (viveu entre 540 e 615) e do monge Cumeano (século VII) capitulam o pecado do aborto em seu catálogo, mas ainda não se importam com o tempo de animação do feto.

O Penitencial de São Beda, o Venerável, que viveu entre 673 e 735, é o mais antigo desses documentos que faz distinção entre o aborto provocado nos primeiros quarenta dias da gestação, prevendo um ano de penitência, e depois desse prazo, com penitência a ser cumprida em três anos: «Mulier partum sum ante dies 40 sponte perdens unum annum pœniteat. Si vero post 40 dies 3 annos pœniteat».

Entretanto, o Penitencial de Halitgário, bispo de Cambraia (França) entre 817 e 831, recomendava que as mulheres que matassem seus filhos já nascidos ou abortassem, sem fazer distinção quanto à idade do feto, ficassem proibidas de comungar até o fim da vida: « Si quis de mulieribus quæ fornicatæ sunt interfecerit quæ nascuntur, aut festinet abortivos facere, primum constitutum usque ad exitum communionem vetat». Por outro lado, ele entendia que esse rigor poderia ser mitigado se a penitente mostrasse frutos de arrependimento: «Ut humanius aliquid consequantur secundum gradus quæ sunt constituta, pœniteant».

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O Penitencial Valicelano I, escrito na Itália entre fins do século IX e começos do século X, aconselhava para a mulher que abortasse penitência de três anos a pão e água, sem distinguir a idade do feto: «Si qua mulier abortum voluntarie III annos peniteat cum pane et aqua». Para quem desse a uma mulher poção para que ela abortasse, ocorrendo o aborto, a penitência seria de cinco anos a pão e água, a fim de não se tornar réu de homicídio: «si mulieris partum per hoc quis deciperit, V annos unusquisque agat in pane et aqua ne homicidii reus sit».

O Penitencial Vigilano ou Albeldense, feito na Espanha, em 976, para quem praticasse aborto propunha penitência de quinze anos, a mesma que para quem matasse um filho já nascido: «Si mulier per poculum aut per quamlibet artem occiderit filium in utero, XV annis peniteat. Similiter et qui denati sunt hoc serbandum est». A penitência não variava conforme a idade do feto, mas era reduzida para sete anos se a mulher fosse muito pobre: «Mulier autem pauperrima si in hoc inruerit VII annis peniteat».

O Penitencial de Silos, feito na Espanha no século X, previa penitência de 15 anos para quem mata o filho já nascido ou pratica aborto, reduzindo essa penitência para dez anos, se a mulher for muito pobre, e para três anos, adotando a tese agostiniana da animação fetal diferida, se o aborto for praticado antes da animação do nascituro: «Si mulier per poculum aut per quamlibet artem occiderit filium vel qui denati sunt, XV annis peniteat, si mulier autem pauperrima, X annis peniteat, si ante quam animam habeat III annis peniteat».

Finalmente, o Penitencial Pseudo-Jeronimiano também adota a tese da animação tardia, indicando penitência de um só ano para quem praticasse aborto antes dos quarenta dias de gestação e, para a mulher que matasse o filho no útero depois desse prazo, a mesma penitência do homicídio: «Mulier quæ concipit et occidit filium suum in utero ante XL dies unum annum peniteat; si post quadraginta dies, ut homicidium debet penitere».

Ou seja, é nos livros penitenciais, obras de autoria privada, carentes de oficialidade e de cogência canônica, que a tese agostiniana da animação fetal diferida começa a ganhar atenção e relevância prática. E isso apenas a partir do século VIII, com o penitencial atribuído a São Beda, o Venerável. A maioria dos documentos consultados, porém, ignora a tese da animação diferida que, portanto, não era dominante.

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Como dissemos anteriormente, no primeiro milênio do cristianismo a Igreja católica não tinha um direito canônico unificado. Isso começou a mudar com a reforma gregoriana, promovida pelo papa São Gregório VII, que pontificou entre 1073 e 1085, homem de gênio e de coragem que talvez tenha sido maior dos papas, reforma que ele realizou com o apoio dos monges da Ordem de Cluny e de Matilde de Canossa, condessa da Toscana. Ainda que São Gregório tenha morrido no exílio, seus sucessores continuaram a reforma, seguindo os conselhos que ele deixou expressos.

Três anos após a morte de São Gregório VII, em 1088, tomamos notícia do funcionamento da Universidade de Bolonha, onde Irnério redescobriu o Corpus juris civilis e fez renascer os estudos do direito romano. Essa foi a primeira universidade da Europa, onde surgiu o método escolástico, baseado no estudo de textos de autoridade a partir de que se suscitavam questões, resolvidas pelo exame dialético de teses opostas. Esse método dialético, próprio para o estudo do direito, em que o pró e o contra enfrentam-se como num processo judicial, sob o julgamento da razão, será levado depois por Pedro Abelardo para o estudo da teologia.

Graciano era um monge camaldulense, nascido na Toscana quando Matilde ainda governava a região, e que foi estudar na Universidade de Bolonha. Graciano entusiasmou-se com os resultados da aplicação do método escolástico no estudo do direito civil e resolveu empregá-lo para unificar o direito canônico, eliminando ou esclarecendo suas aparentes contradições, numa compilação a que deu o nome de Concordantia discordantium canonum (Concordância dos Cânones Discordantes) e que foi concluída por volta de 1140. Apesar de ser uma compilação privada e nunca ter sido promulgada oficialmente, a obra de Graciano acabou sendo conhecida pelo nome de Decreto e gozou de grande autoridade, representando para o direito canônico o mesmo que para o direito romano significou o Digesto de Justiniano, vindo posteriormente a constituir o primeiro volume do Corpus juris canonici, que seria aplicado pelos tribunais eclesiásticos até 1917, quando Bento XV promulgou o Código de Direito Canônico mandado fazer por São Pio X.

No Decreto de Graciano, o aborto, desde a concepção, é expressamente equiparado ao homicídio: «ille, conceptum in utero per abortum deleverit, homicida est» (“aquele que destrói pelo aborto o ser concebido no útero, homicida é”: cân. 8, questão II, causa 22). Nesses termos, quem praticava aborto incorria na excomunhão prevista para os homicidas no cânon 20 da questão III da causa 24.

No entanto, em 1214, o papa Inocêncio III, na constituição Sicut ex literarum vestrarum, acolheu a tese agostiniana da animação fetal tardia, considerando homicida apenas quem praticasse o aborto depois que o feto estivesse “formado”, como se dizia na época: «Qui dat causam abortioni, homicida est, si conceptum erat vivificatum anima rationale ». Isso não significava, todavia, permissão para a prática do aborto antes do momento em que se supunha dar-se a animação do feto. O aborto voluntariamente praticado, mesmo antes desse momento, já era considerado pecado mortal, algo proibido pela lei divina e, portanto, atraía para o cristão o dever de recorrer à penitência sacramental, inclusive para poder receber os chamados sacramentos de vivos (Eucaristia, confirmação, ordem, matrimônio e extrema-unção).

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Esse cânon de Inocêncio III tornou-se norma para toda a Igreja desde então e foi recolhido por São Raimundo de Penaforte no livro V das Decretais, compilação promulgada pelo papa Gregório IX em 1234 e que mais tarde, junto com o Decreto de Graciano, também faria parte do Corpus juris canonici.

É preciso atentar, porém, que Inocêncio III não pretendeu com isso resolver definitivamente a questão da animação fetal, que continuou controversa na Igreja. Pelo contrário, o que ele fez foi reconhecer essa controvérsia: admitia-se que o aborto praticado antes da suposta animação do feto fosse pecado mortal porque, na dúvida em relação à vida da criança, a tese da animação instantânea prevalecia; e considerava-se homicídio apenas depois dessa suposta animação porque, na imposição das censuras eclesiásticas, a tese da animação tardia favorecia os réus (in dubio pro reo).

Teoricamente, seguia-se a opinião de Aristóteles, já aqui referida, segundo a qual a alma humana era infundida no feto por volta dos quarenta dias de gestação, se do sexo masculino, ou dos noventa dias, para o sexo feminino. Na prática, entretanto, esse prazo pouco importava porque, na Idade Média, não havia meios de se conhecer com segurança a idade da gestação, muito menos o sexo do bebê. Ademais, como o aborto já era considerado pecado mortal se praticado antes da suposta animação, essas coisas resolviam-se no confessionário, visto que nessa época a penitência auricular já havia substituído as penitências públicas e tarifadas da era antiga. Se a penitente confessava estar certa que a criança que abortou já estava formada, cabia ao confessor, que não lhe pudesse dar a absolvição sacramental, orientá-la a procurar um sacerdote canonicamente habilitado para desligá-la da excomunhão, em geral o bispo diocesano.

Santo Tomás de Aquino, o Doutor Comum e Universal da Igreja, foi o maior teólogo do cristianismo. Acontece que Santo Tomás tinha profundo respeito pelas autoridades, especialmente no sentido intelectual do termo. E as três maiores autoridades que S. Tomás reconhecia – a Igreja de sua época, Santo Agostinho e Aristóteles – esposavam a tese da animação fetal diferida ou tardia.

Nesse contexto, Santo Tomás descartou expressamente a tese de São Gregório de Nissa, partidário da animação fetal instantânea ou imediata (cf. questão terceira De potentia, artigo 9, resposta à nona objeção) e abraçou a tese aristotélica e agostiniana da animação fetal sucessiva: «o embrião tem primeiramente uma alma apenas sensitiva. Essa desaparece, e uma alma mais perfeita lhe sucede, que é ao mesmo tempo sensitiva e intelectiva» (Suma Teológica, I parte, questão 76, artigo 3, resposta à 3ª objeção). O aborto seria equiparado ao homicídio apenas depois do momento em que se desse a animação fetal: «Quem fere uma mulher grávida pratica uma ação ilícita. Portanto, se daí resultar a morte da mulher ou do feto já animado, não escapará ao crime de homicídio» (Suma Teológica, IIa IIæ, q. 64, a. 8, resp. à 2ª obj., destaque nosso). Observem que, a partir do momento em que pensava começar a animação fetal, Santo Tomás era bem mais rigoroso com o aborto do que o próprio direito penal brasileiro, que a esse crime impõe penas mais leves que as previstas para o homicídio (consultar os arts. 121, 124, 125 e 126 do Código Penal).

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Ademais, Santo Tomás chegou mesmo a escrever que o aborto era um pecado pior que o homicídio. Em seu Comentário ao Credo, ao tratar do quinto mandamento, diz o seguinte: «Deve também considerar-se que alguns matam apenas o corpo, aos quais se refere o que ficou dito, mas outros matam a alma, eliminando a vida da graça (...). Outros ainda matam as duas coisas e isto de duas formas. Primeiro, matando o bebê durante a gravidez, matando assim a criança no corpo e na alma. Em segundo lugar matando-se a si mesmo». Ou seja, o aborto, à malícia própria do homicídio, acrescenta a de impedir a criança de renascer pelo batismo e assim obter a vida sobrenatural da graça.

Não há, em todo o Corpus Thomisticum (conjunto completo das obras conhecidas de Santo Tomás), uma única linha em que o Aquinate justifique, tolere ou aprove o aborto, em qualquer estágio que seja da gestação. Pelo contrário, sua doutrina era muito clara: «Procurare abortum fœtus sive animati, sive inanimati directe et ex intentione est gravissimum peccatum, quod nullo bono fine sive famæ, sive vitæ salvandæ, cohonestari potest» (cf. Billuart, Summa S. Thomæ hopdiernis academiarum moribus accomodata, tomus X, dissertatio X, artículus VII, Wirceburgus, 1758. p. 127). Tradução: “Procurar o aborto do feto, ou animado, ou inanimado, diretamente e de propósito, é gravíssimo pecado, que nenhum fim bom, seja a fama, seja para salvar a vida, pode coonestar”.

Santo Tomás também ensinava que o Cristo recebeu uma alma humana no primeiro instante de sua concepção (cf. Suma Teológica, III, q. 33, a. 2; Suma contra os Gentios, livro IV, capítulo XLIV; Comentário ao Livro das Sentenças de Pedro Lombardo, III, distinção 3, q. 5, a. 2). Ora, se Jesus assumiu em tudo a natureza humana, menos no pecado, como consta da Escritura (cf. Hebr 2,17; 4,15), era razoável concluir que todos os homens também recebessem sua alma espiritual no primeiro instante de sua concepção. No entanto, Santo Tomás não ousou dar esse passo.

A normativa canônica estabelecida por Inocêncio III permaneceu inalterada até o século XVI. Em 29 de outubro de 1588, o papa Sisto V, com a bula Effrænatam perditissimorum hominum, pretendeu retornar à disciplina do Concílio de Elvira e São Basílio: impôs a excomunhão maior sobre todos os provocadores de aborto e os que com eles cooperassem, sem distinguir entre feto animado e inanimado. No entanto, o papa Gregório XIV, em sua bula Sedes apostolica, de 31 de maio de 1591, voltou à normativa de Inocêncio III, revogando a excomunhão para quem provocasse o aborto de feto inanimado e deixando-a subsistente apenas no caso em que o feto já estivesse formado. O aborto provocado antes do tempo em que se supunha ocorrer a animação do feto era reconhecido pecado mortal, mas deixava de acarretar a penalidade adicional de excomunhão. Tal regime prevaleceu até o século XIX, quando o desenvolvimento da ciência biológica desacreditou a tese da animação fetal tardia.

Em 2 de março de 1679, o papa bem-aventurado Inocêncio XI condenou como errôneas 65 teses de teologia moral consideradas laxistas, entre as quais a seguinte: «é lícito procurar o aborto antes da animação do feto, para que a menina descoberta grávida não seja morta ou desonrada» (Denzinger, 2134).

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Das ciências naturais modernas, a biologia foi a última a se desenvolver, aparecendo apenas em princípios do século XIX. Em 1827, Karl Ernst von Baer apresentou à Academia de Ciências de São Petersburgo a monografia Ovi mammalium et Hominis genesi, em que pela primeira vez descreveu a existência da célula-ovo ou zigoto e o desenvolvimento do embrião humano. Essa descoberta científica, tornava insustentável a tese da animação tardia do feto humano, pois comprovava que, desde a concepção, havia, não uma massa informe, mas um corpo organizado com potência à vida. Essa tese começou a ser abandonada pelos teólogos moralistas e a distinção feita pelo direito canônico entre feto animado e inanimado passou a ser vista como anacronismo.

Em 1854, a definição solene do dogma da imaculada conceição (concepção) de Nossa Senhora, pela bula Ineffabilis Deus, do papa bem-aventurado Pio IX, foi também lida como reconhecimento implícito da tese da animação fetal imediata: se a Virgem Maria foi cheia da graça divina desde a sua concepção, é porque ela tinha uma alma humana desde a concepção e, se ela tinha uma alma desde a concepção, não havia razão para supor que com os outros seres humanos fosse diferente.

Finalmente, aos 12 de outubro de 1869, o papa bem-aventurado Pio IX, editou a bula Apostolicæ sedis moderationi, reformando o direito penal canônico, aderindo oficialmente à tese da animação fetal instantânea e abolindo a distinção entre feto animado e inanimado para a incidência da excomunhão maior por delito de aborto. Essa disciplina manteve-se essencialmente até hoje.

Em 1886, já no pontificado de Leão XIII, a Congregação do Santo Ofício, atual Congregação para a Doutrina da Fé, foi consultada pelo arcebispo de Cambraia (França) para que respondesse se seria lícita a craniotomia do feto para salvar a vida da mãe. A resposta foi dada aos 19 de agosto de 1889, no sentido de que seria ilícita não apenas a craniotomia, mas também qualquer outra operação cirúrgica que matasse diretamente o feto ou a mãe (Denzinger, 3258).

Em 1895, o arcebispo de Cambraia mais uma vez consultou o Santo Ofício, perguntando se, sem que houvesse nenhuma operação cirúrgica, fosse lícito provocar a expulsão do feto prematuro, sem condições de sobrevivência fora do útero, para salvar a vida da mãe. A resposta, confirmada pelo papa Leão XIII aos 15 de julho, foi negativa (Denzinger, 3298).

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Aos 4 de maio de 1898, o Santo Ofício respondeu ao bispo de Sinaloa (México) que seria lícita a aceleração do parto ou operação cesárea quando a estreiteza da mulher impossibilitar a saída da criança no momento natural, como também a laparotomia em caso de gravidez ectópica, provendo-se o possível para salvar a vida da criança e da mãe, mas em caso algum o aborto (Denzinger, 3336-8).

Em 1917, o Código de Direito Canônico, mandado fazer por São Pio X, mas promulgado por Bento XV, seu sucessor, manteve no cânon 2.350, a excomunhão latæ sententiæ para o aborto provocado nos mesmos termos em que o bem-aventurado Pio XI havia decretado em 1869, isto é, sem fazer distinções quanto à animação do feto. Depois do Concílio Vaticano II, o novo Código de Direito Canônico, promulgado em 1983 por São João Paulo II, conservou a excomunhão latæ sententiæ para o aborto em seu cânon 1.398.

Ao longo do século XX, os papas, no exercício de seu magistério ordinário, diversas vezes expuseram a doutrina católica sobre o aborto, tal como desenvolvida até o momento. Destacamos Pio XI, na encíclica Casti connubii (31 de dezembro de 1930); Pio XII, em sua Alocução aos Obstetras, de 1951; e São Paulo VI, na encíclica Humanæ vitæ (25 de julho de 1968), que condenou o malthusianismo. O Concílio ecumênico Vaticano II, em sua constituição pastoral Gaudium et spes (7 de dezembro de 1965), também condenou o aborto como um crime abominável.

Finalmente, na encíclica Evangelium vitæ, de 25 de março de 1995, o papa São João Paulo II, usando do carisma da infalibilidade, definiu o seguinte: «com a autoridade que Cristo conferiu a Pedro e aos seus sucessores, em comunhão com os bispos — que de várias e repetidas formas condenaram o aborto e que, na consulta referida anteriormente, apesar de dispersos pelo mundo, afirmaram unânime consenso sobre esta doutrina — declaro que o aborto direto, isto é, querido como fim ou como meio, constitui sempre uma desordem moral grave, enquanto morte deliberada de um ser humano inocente. Tal doutrina está fundada sobre a lei natural e sobre a Palavra de Deus escrita, é transmitida pela Tradição da Igreja e ensinada pelo magistério ordinário e universal» (n. 62). Portanto, trata-se de uma questão já definitivamente resolvida na Igreja católica, que não mais comporta discussão nem mudança.

Finis, laus Deo.

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Rodrigo R. Pedroso é advogado, mestre em filosofia pela FFLCH/USP e procurador da Universidade de São Paulo.

Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]