A Constituição brasileira aprendeu bastante com a história. Depois de tantos contratempos, agressões e desrespeitos, ela resolveu se blindar do próprio pai: o legislador constitucional. Caso se queira modificá-la, o rito é custoso, difícil, definido em minúcias. Isso justamente para impedir abusos.

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Afinal, a nossa Constituição foi vilipendiada não apenas uma ou duas vezes. Pensemos na Revolução de 1930 (que suspendeu a Constituição de 1891); na Carta de 1937 (que revogou a de 1934); no Ato Institucional de 1964 (que revogou parcialmente a Constituição de 1946) e em todos aqueles que a ele se seguiram no regime militar. Isso sem se falar na Emenda Constitucional n.º 1, de 1969, que continha apenas dois singelos artigos: o primeiro (“A Constituição de 24 de janeiro de 1967 passa a vigorar com a seguinte redação”) e o segundo (“A presente Emenda entrará em vigor no dia 30 de outubro de 1969”). Entre os dois, estavam outros 200 artigos – que nada mais eram do que uma “nova Constituição”.

Mais recentemente, a Constituição promulgada em 1988 já possui 88 emendas. Isso sem se falar nas seis emendas de revisão, datadas de 1994. Logo, a criatividade do legislador constituinte não tem fronteiras. Pouco importa se no regime democrático ou sob ditaduras. Ele tende a ser incansável na mudança do texto constitucional, a fim de implementar no mais importante diploma normativo – e supostamente o mais estável – o seu programa de governo (ou a sua plataforma eleitoral). A Constituição tende a tornar a nossa vida difícil – e é exatamente nesses momentos difíceis que ela precisa ser respeitada.

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O que se passou na Câmara na madrugada de quinta-feira foi uma manobra de fazer corar um poder constituinte que se respeite

Não é devido a um acaso que a Constituição é apelidada de “Lei Fundamental” ou de “Lei Magna”. Isso se dá devido ao fato de que ela é a lei mais importante de todas. É ela quem define quais são os nossos direitos fundamentais. Ela pretende impedir que haja abusos no exercício do poder (qualquer que seja ele: econômico, político, midiático etc.). É também a Constituição que estabelece como, onde e quando o poder político pode ser exercido. Mais do que isso, e como o nome já diz, é a Lei Fundamental quem dá fundamento a todos os poderes do Estado (inclusive o constituinte derivado). Por isso os poderes – Legislativo, Executivo e Judiciário – são poderes “constituídos”.

O mesmo se diga do poder constituinte exercido pelo próprio Congresso. O exercício do poder de emendar a Constituição tem fundamento nela própria. É ela quem diz como, onde e quando ele pode ser exercido. Esse “poder” – que nada mais é do que uma competência – só pode ser posto em prática nos estreitos limites estabelecidos pela própria Constituição. Caso contrário, estaremos diante de uma lei ordinária, sem qualquer consistência superior – e o fundamento do sistema desaba.

Assim, o que se passou na Câmara dos Deputados na madrugada de quinta-feira foi uma manobra de fazer corar um poder constituinte que se respeite. A Constituição brasileira proíbe, com todas as letras, que emenda rejeitada seja objeto de nova votação na mesma legislatura. Isto é, diz quando esse poder não pode ser exercido. O art. 60, §5.º, é de clareza solar: “A matéria constante de proposta de emenda rejeitada ou havida por prejudicada não pode ser objeto de nova proposta na mesma sessão legislativa”. Ora, qual foi a “matéria constante”? Redução da maioridade penal. Qual foi a primeira votação? Pela rejeição da emenda. Logo, deixe-se a ansiedade de lado e respeite-se a Constituição. O “quando” a respeito dessa matéria somente surgirá na próxima legislatura.

Daí o motivo pelo qual a emenda tornou-se inconstitucional. A Câmara nem sequer poderia ter submetido o tema a votação. O que demonstra a perigosa falta de apreço pela Constituição: afinal, se o próprio Legislativo não a respeita, quem a cumprirá?

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Egon Bockmann Moreira, advogado e doutor em Direito, é professor da Faculdade de Direito da UFPR.