Para entender o que aconteceu na política britânica nesta quarta-feira, talvez seja melhor explicar como funciona o Mornington Crescent, um programa de rádio muito popular que está no ar há décadas.
De fato, à primeira vista, a atração parece um jogo estratégico complexo. Nele, os participantes se alternam, anunciando as estações ao longo da rota do metrô londrino. O objetivo é ser o primeiro a chegar a Mornington Crescent, que fica na linha norte. É um evento barulhento, pois os jogadores se manifestam em voz alta quando os adversários fazem uma jogada particularmente boa e vibram quando alguém ganha. Lembram com saudade as rodadas passadas. É também muito complicado. Em praticamente todas as partidas, vê-se a introdução de uma nova série de normas rebuscadas com nomes do tipo "Variações de Trumpington" ou "Regras da Corte Tudor", de acordo com as quais os jogadores seguem a disputa, obedientes.
Os ouvintes frequentes já perceberam que o jogo é totalmente inventado. Não há regras de verdade; a qualquer momento, alguém pode "ganhar" simplesmente vocalizando as palavras – mas nunca ninguém tem coragem, óbvio. Porque é uma coisa que não se faz.
Entretanto, a possibilidade me veio à mente com força total quando Boris Johnson rompeu com as frágeis convenções de Westminster ao anunciar que vai simplesmente suspender o Parlamento para evitar que seus opositores impeçam o Brexit sem acordo até que essa saída seja quase inevitável.
É fácil ignorar as regras. A Constituição britânica, complicada, foi praticamente criada para isso
É claro que ele não colocou a coisa nesses termos. Segundo sua explicação – durante a qual mal conseguiu segurar a expressão séria –, o objetivo era introduzir uma "pauta interna urgente". Mas o efeito foi claro: Johnson prometeu ali que o Reino Unido vai deixar a União Europeia, com ou sem acordo, em 31 de outubro. Seus adversários já estão analisando as regras e convenções estruturais, tentando encontrar uma maneira de frustrá-lo. A última sugestão foi forçar o governo a buscar uma extensão do prazo; Johnson reagiu simplesmente desativando o sistema.
Sem dúvida, é um ato sem precedentes – um governo de minoria impedindo deliberadamente que os parlamentares examinem e debatam uma das decisões mais importantes da história moderna do país – e beira o autoritarismo. Não há validação democrática concebível para sair da Europa sem acordo; aliás, vários membros da campanha pró-Brexit em 2016 descartaram a possibilidade. O próprio Johnson disse, há alguns meses, que as chances de não haver acordo eram de "uma em um milhão". Os especialistas preveem que, como tudo indica, se isso acontecer, causará enormes danos ao país.
Entretanto, é nessa condição esquisita que o país se encontra. E aqui há um problema: como no caso do programa Mornington Crescent, as regras sobre as quais sua política se baseiam são tácitas – ao contrário das francesas, norte-americanas ou alemãs – e seu funcionamento perfeito se dá graças às convenções, às boas maneiras e ao conceito de jogo limpo. Há também poucos corretivos, como se está descobrindo, caso alguém resolva desrespeitar tudo isso.
Enquanto Johnson e os defensores da saída avançam, parlamentares e analistas tentam bravamente segurar as regras do jogo. "Ah, sim", dizem, a cada rompimento surpreendente das tradições. "Em breve as coisas vão voltar ao normal. Se vocês analisarem o Apêndice VIII da edição Featherington…" (ainda na quarta, debatia-se se a rainha poderia intervir ou efetivamente interviria para impedir essa quebra de protocolo; não, ela não pode, e nem o fez). Os principais envolvidos, porém, de repente perceberam que podem ganhar muito mais rápido se simplesmente ignorarem as regras: "Mornington Crescent!", chamam, imediatamente, e o jogo acaba.
É fácil ignorar as regras. A Constituição britânica, complicada, foi praticamente criada para isso, facilmente modificada por um voto no Parlamento ou uma decisão do presidente da Câmara dos Comuns. Durante anos, seus membros tiveram muito cuidado para não corromper o processo – mas parece que assumiram a negligência.
Alguns lembram a imprudência de Tony Blair, que teve o desplante de devolver o poder às assembleias da Escócia, País de Gales e Irlanda do Norte e ao povo, por meio de referendos. Outros países são mais cuidadosos: a Irlanda realiza essa consulta popular, mas, pelas regras de sua Constituição, ela só pode ser feita depois da aprovação do projeto de lei que explique em detalhes o que significa. O Reino Unido realizou o referendo primeiro, achando que poderia acertar os detalhes depois.
Entretanto, toda essa manipulação não levaria, necessariamente, ao estado atual de coisas, se o mecanismo do pudor não tivesse emperrado. Só que, de pouco em pouco, desde 2016, testemunhamos a erosão da disposição de agir de acordo com as regras que mantiveram o sistema, ainda que frágil, intacto por tanto tempo.
Houve as mentiras da campanha do grupo que defendia a saída; a tendência repentina dos líderes dos partidos de se manterem no cargo em circunstâncias nas quais seus antecessores certamente teriam achado que a única saída era a renúncia; a nova convenção rezando que político fazendo lambança não é coisa do outro mundo. Antes, duas semanas de manchetes negativas eram mais que suficientes para acabar com uma carreira; agora, espera-se apenas que os parlamentares driblem as críticas.
Onde fica a democracia britânica com tudo isso? O atual primeiro-ministro aprendeu com os erros de sua antecessora, que foi totalmente tolhida pelas regras. Só que agora o país tem um líder que foi eleito por uma porcentagem minúscula da população – os parlamentares conservadores e membros do partido –, que pretende evitar deliberadamente a análise cuidadosa para ver aprovada uma medida que nunca sequer foi votada. A defesa da democracia é o grito de guerra daqueles que querem o cumprimento do Brexit – mas os britânicos devem começar a questionar se sua ilha não está se afastando desse conceito para sempre.
Martha Gill é jornalista política e mora em Londres.
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