A maioria dos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) entendeu que o aborto em caso de gravidez de feto anencéfalo (sem cérebro) não é crime. A decisão criará um efeito erga omnes ou seja, favorecerá todas as mulheres, que agora não precisam mais de autorização judicial para interromper a gravidez após o diagnóstico de anencefalia.
Essa decisão criará um novo paradigma jurídico sobre o aborto de anencéfalos e também da saúde da mulher no Brasil. Agora, a gestante não precisará mais ficar na dependência de uma autorização judicial, que gera uma expectativa negativa e uma enorme pressão psicológica.
O entendimento do Supremo corrobora a Lei 9.434/97, na qual está disposta que a vida cessa com a morte encefálica ou morte cerebral. Se não há vida no feto anencéfalo, sob o prisma jurídico, não há sentido em prolongar a gravidez e acarretar riscos e prejuízos psicológicos e à saúde da gestante. O avanço, portanto, estará na possibilidade de a mulher interromper a gravidez, diante do diagnóstico inconteste, sem que haja a intervenção do Estado.
O posicionamento do Supremo também favorece os profissionais da saúde, pois possibilita uma segurança jurídica para o exercício profissional. Sem receio de cometerem ilícito penal e ético, as equipes poderão auxiliar as mulheres grávidas de fetos anencéfalos que decidirem realizar a antecipação terapêutica do parto.
Em razão da sensibilidade provocada pelo tema, o Conselho Federal de Medicina (CFM) criou uma comissão com membros do próprio conselho, das sociedades médicas de Pediatria, Neurologia, Ginecologia e Obstetrícia, do Ministério da Saúde, e especialistas em ultrassonografia fetal para que haja segurança no diagnóstico e para que seja elaborado um protocolo para guiar o acompanhamento da gestante que decidir pela antecipação do parto.
O país apresenta um serviço precário para atendimento de gestantes. Há centros de excelência no atendimento público à gestante, mas poucos estabelecimentos efetivamente comprometidos com uma política de humanização do parto e com a oferta de um serviço de acompanhamento pré-natal. Por outro lado, a realidade precária da saúde não ofusca a magnitude da decisão do STF. É incontestável sua representatividade jurídica e social. Se a ADPF fosse julgada improcedente, perderiam as mulheres, os profissionais de saúde e a sociedade, inclusive os defensores da continuidade da gestação.
No país, segundo informações do Ministério da Saúde, há 65 hospitais já credenciados para a realização do aborto legal; as mesmas equipes poderão realizar a interrupção da gravidez em caso do aborto de anencéfalos. Da mesma forma, as mulheres que possuem planos de saúde também terão cobertura, como já ocorre nos abortos autorizados por lei, os quais se encontram no rol de procedimentos da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS).
Para que se possa garantir a dignidade da mulher, sua privacidade, sua saúde física e, em especial, seu direito à reprodução, será fundamental a criação de equipes multidisciplinares nos centros de saúde com o propósito de se acompanhar as mulheres e famílias envolvidas em um diagnóstico de feto anencéfalo e expostos à situação inesperada de se realizar a antecipação do parto. Nenhum dos ministros do STF deixou de imprimir em seu voto a gravidade do momento para a mulher: somente os familiares muito próximos e a equipe de saúde que acompanhar a gestante em sua decisão serão as testemunhas do sofrimento que se passe por esse momento, então, com respeito e a dignidade merecidos e reconhecidos em nosso Direito.
Sandra Franco é presidente da Academia Brasileira de Direito Médico e da Saúde.
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