O recém-lançado documentário da Netflix, O dilema das redes, reflete sobre as redes sociais e seu impacto na sociedade. Ele aborda alguns temas interessantes e importantes, porém, interpreta alguns pontos de forma equivocada e propõe soluções inadequadas que incentivam uma narrativa perigosa para a liberdade e prosperidade.
No início do documentário, há relatos de ex-funcionários das maiores redes sociais do mundo que são convidados como especialistas para opinarem sobre assuntos que não são, necessariamente, de sua especialidade (efeitos psicológicos do uso de redes sociais, leitura sociológica sobre o impacto político e econômico das decisões defendidas). Aqui detectamos o uso de uma falácia conhecida como “argumento de autoridade”, estratagema explicada na obra dialética erística do filósofo e autor alemão Arthur Schopenhauer. É importante ressaltar esse ponto, já que o fato de uma pessoa ter criado uma tecnologia ou ser altamente especializada em algo não implica que suas opiniões ou predições devam ser consideradas úteis em quaisquer contextos.
Em um dos primeiros relatos do documentário, Tristan Harris (ex-Google), conta que lhe incomodava trabalhar para tornar o Gmail “viciante”. Ele conta que questionava a si próprio e à equipe: “quando vamos discutir como tornar o Gmail menos viciante?”
Existem três grandes problemas com essa pergunta:
1. O Google é uma empresa privada com fins lucrativos. Seu objetivo declarado e transparente é fazer com que o seu produto seja usado pelos usuários. Agir de outra forma seria como se um produtor de cadeiras desenvolvesse uma cadeira desconfortável sobre o pretexto de que ficar sentado é negativo para a população. Tal postura seria prejudicial – para não dizer desonesta – com o negócio e todos os envolvidos que investiram tempo e recursos com vistas ao lucro.
2. Melhorar o produto não o torna, necessariamente, “viciante”. Se o produto é mais eficiente, o usuário pode fazer o que precisa mais rapidamente, produzindo mais em menos tempo. Possivelmente, produtos concorrentes mais “travados” fariam o usuário perder mais tempo, piorando o “problema” levantado por Tristan.
3. Os usuários são vistos como vítimas do produto e suas funcionalidades. Mas não somos nós que decidimos o que usar e como? Se há um problema, ele está no produto feito para nos servir ou no fato de que, às vezes, não somos capazes de usá-lo com equilíbrio?
O documentário também fala sobre as fake news (notícias falsas). Os entrevistados destacam o perigo inerente de as mídias sociais disseminarem informações incorretas em escala ou serem usadas com fins de manipulação.
Este ponto é mais complexo, mas vale algumas ponderações:
1. As notícias falsas não são invenção da internet ou das mídias sociais. Desde sempre, consumimos notícias que podem ser falsas ou mal interpretadas. A grande mudança com a internet, nesse aspecto, é positiva: quanto maior a quantidade de fontes disponíveis para acessarmos e formarmos nossa própria opinião, melhor.
2. Ao estabelecer uma lei e/ou regulamentação que fiscaliza as notícias falsas estamos sugerindo que alguém tem o poder de dizer o que é ou não é verdade. E quem fiscaliza o fiscal? Como garantir a integridade e idoneidade desse processo?
3. A decisão de abolir as fake news por decreto limita nossa liberdade. No melhor cenário, imaginemos que essa decisão se prove acertada. Ainda assim, há um risco iminente incalculável: o que esse poder regulador pode fazer amanhã? Que outros direitos podem ser limitados? A possibilidade de uma notícia ser incorreta ou mal interpretada é pior do que a possibilidade de o governo tirar o nosso direito de comunicar e, naturalmente, de errar?
Para enfatizar a importância dos pontos supracitados, devemos entender o papel da liberdade de expressão na proteção e evolução de valores e direitos para toda a humanidade. A liberdade de expressão é a nossa principal arma contra nossos erros e ignorância. Como exemplo, lembre-se de que, num determinado período da história, a escravidão era aceitável, pois havia a crença de que determinadas etnias representavam povos menos aptos, que não mereciam o mesmo tratamento e dignidade que outros e, portanto, era aceitável capturá-los, comercializá-los e forçá-los a trabalhar como escravos. O que fez com que essa ideia fosse questionada? Justamente, a liberdade de expressão. E se essa liberdade não existisse? Algum órgão regulador poderia simplesmente defender que “isso é falso, esses seres são inferiores e, portanto, podemos continuar escravizando-os”, coibindo, assim, qualquer ponto de vista contrário.
Jordan Peterson, psicólogo, autor e professor da Universidade de Toronto, explica que o ato de pensar é extremamente complexo, pois pressupõe a construção de personagens internos que debatem um contra o outro o tempo todo. Segundo Peterson, a liberdade de expressão é o que garante que podemos expressar livremente sobre essa batalha interna de opiniões, dialogar e, através disso, refinar nosso senso crítico, formar uma opinião e melhorar nossa percepção da realidade. A liberdade de expressão nos garante o direito de aprender.
E podemos aprender mais não apenas sobre fatos e percepções, mas sobre nós mesmos. O documentário também reflete sobre a inteligência emocional e que estratégias podemos adotar para navegar nesse mundo em constante mudança. De fato, temos acesso a uma infinidade de conteúdos e perspectivas e é extremamente importante conseguirmos digerir, equilibrar e utilizar tudo isso de forma eficiente e saudável.
O caminho para isso, no entanto, passa longe do vitimismo. Friedrich Hayek, economista e filósofo austríaco, afirma no livro A Constituição da Liberdade: "Liberdade significa não somente que o indivíduo tenha tanto a oportunidade quanto o fardo da escolha; significa também que ele deve arcar com as consequências de suas ações. Liberdade e responsabilidade são inseparáveis."
O ponto central disso tudo é um só: a liberdade. Liberdade para criar sem intervenções, expressar-se sem restrições e ser responsável por nossas escolhas e ações. A liberdade, especialmente a liberdade da menor minoria do mundo, o indivíduo, precede qualquer coisa. Essa é a importância de refletirmos e compartilharmos nossas percepções sobre obras como O dilema das redes, inclusive para propormos soluções que não minimizem esse direito irrevogável.
Marcio Unrue Ramos é graduado em comunicação social com ênfase em marketing pela ESPM-SP, líder de multichannel capabilities da Eli Lilly e diretor do 7º Fórum Liberdade e Democracia do IFL-SP.
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