A sociedade brasileira está estruturada, entre outras, na premissa de que a saúde é direito de todos e dever do Estado, conforme o texto do artigo 196 da Constituição Federal. Em nível abstrato, a prescrição funciona perfeitamente. Na prática, contudo, é preciso observar que a execução deste dever do Estado depende de investimentos em procedimentos, pessoal qualificado, material, estrutura e medicamentos.
Neste sentido, portanto, é preciso reconhecer que os direitos têm custo e, consequentemente, dependem de recursos para que possam ser concretizados. É apenas uma decorrência lógica, então, reconhecer que o Estado tem um limite (aferido por critérios financeiros) para o cumprimento do seu dever à tutela coletiva da saúde. Sendo finitos os recursos, o Estado deve fazer escolhas que venham a atender da maneira mais adequada os seus propósitos. Deve agir, pode-se dizer, com eficiência. De novo, em nível abstrato, isso faz perfeito sentido.
Nos casos práticos, estas mesmas premissas, plenamente válidas e aceitas em teoria, começam a dividir opiniões. Se a saúde é direito de todos e dever do Estado – como prevê a Constituição –, deveria ser inquestionável, em tese, que um paciente tenha a si garantido (e custeado) pelo Estado o acesso a medicamento necessário para o seu tratamento, ainda que seja ele de alto custo.
Vale lembrar: os recursos públicos são finitos e o Estado deve atender, também, a toda a sociedade. O fornecimento de medicamentos excessivamente caros para um único paciente, quando o valor equivalente poderia custear o tratamento de um número muito maior de outros cidadãos, poderia ser entendido como uma decisão ineficiente por parte do Estado.
O tema não é apenas jurídico: questões de natureza moral se fazem presentes
Dilema muito similar ao indicado acima foi apresentado ao Supremo Tribunal Federal (STF) pelo estado do Rio Grande do Norte, por meio de recurso extraordinário no qual se alegou, inclusive, que em quatro meses (de janeiro a abril do ano em que interpôs o recurso) teria gasto porcentual superior a 76% de todo o orçamento previsto para o setor de saúde naquele ano, somente em decorrência de decisões judiciais que o obrigavam a fornecer medicamentos de alto custo.
Utilizando-se deste argumento, o estado pretendia demonstrar a repercussão geral da causa em discussão, ou seja, o potencial impacto que a decisão do STF poderia ter sobre o sistema de saúde brasileiro como um todo. Em avaliação preliminar, os ministros acolheram o pleito do estado e reconheceram a repercussão geral; passaram, então, a analisar a matéria em detalhe.
Colocando-se os aspectos jurídicos de lado por um momento, é possível verificar que questões de natureza moral se fazem presentes e, efetivamente, explicitam a relevância social da causa, especialmente pelo impacto vinculante da decisão à sociedade como um todo.
Uma polarização dos argumentos pode ser sugerida a partir de duas concepções filosóficas, uma decorrente do utilitarismo – pela qual a decisão moralmente correta é aquela que promove a maior utilidade para o maior número de indivíduos – e a outra, proveniente da concepção de justiça como equidade, pela qual os indivíduos teriam direitos irrenunciáveis e que não seriam passíveis de restrição ou flexibilização, ainda que em prol de benefícios à coletividade. A afirmação sustenta-se a partir de uma breve análise de alguns dos votos antecipados pelos ministros Marco Aurélio Mello e Luís Roberto Barroso.
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De maneira muito sucinta, Barroso alerta no seu voto vista, conforme a última versão disponibilizada, que “as decisões judiciais extravagantes ou emocionais que condenam a administração ao custeio de tratamentos irrazoáveis põem em risco a própria continuidade das políticas de saúde pública”. Marco Aurélio, em seu voto antecipado, também conforme a última versão disponibilizada, afirma que “a saúde, nela englobado o acesso a medicamentos, constitui bem vinculado à dignidade do homem e, assim, o direito à saúde como direito ao mínimo existencial é direito fundamental”.
São duas concepções morais que podem ser pensadas como antagônicas, mas que sustentam uma mesma decisão, quando se observa que tanto Marco Aurélio como Barroso defendem que o cidadão tem direito ao recebimento, pelo Estado, de medicamento de alto custo. Entretanto, os ministros concordam que deve haver a fixação, pelo STF, de requisitos que possam prevenir o comprometimento excessivo de recursos do Estado e a judicialização da saúde, sem o prejudicar o direito do cidadão.
Está se desenhando, então, uma saída mista e híbrida para o crucial debate sobre a obrigação de o Estado fornecer medicamentos de alto custo, a qual pode ser vista como uma evidência da ideia de concepção sobreposta (overlapping consensus) do filósofo John Rawls, que pode ser entendida (resumidamente e neste caso concreto) como uma concepção política da justiça formada a partir de ideias intuitivas do ser humano e que não dependem exclusivamente de quaisquer argumentos religiosos, filosóficos, metafísicos ou jurídicos. A concepção de justiça seria, então, aceita coletivamente apesar da existência de concepções doutrinárias diferentes entre os indivíduos.
Espera-se que o julgamento siga um critério de razoabilidade e, ao fim, seja proferida uma decisão que reconheça a obrigação de o Estado fornecer medicamentos de alto custo quando, por exemplo, o tratamento se fizer indispensável e insubstituível ao paciente; e quando o paciente demonstrar não ter condições financeiras para arcar com os custos do medicamento por si mesmo, conjugando o direito fundamental à saúde do indivíduo (pela moral da justiça como equidade) e a preservação da capacidade de o Estado continuar a manter a tutela de direitos à coletividade (pela moral utilitarista).