A ausência de disciplina jurídica à realidade das uniões homoafetivas demonstra um juízo de desvalor e uma preconceituosa omissão
A ausência no Brasil de lei específica sobre as uniões homoafetivas não pode criar uma situação de desigualdade ou discriminação. A propósito, o artigo 4.º da Lei de Introdução ao Código Civil prevê que na omissão da lei, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito.
A vida é maior que o Direito. Este existe para servir aquela, e não o contrário. É por isso que, em vários cantos do País, começam a surgir vozes em favor do reconhecimento dos direitos daqueles que convivem com companheiros do mesmo sexo. Comunhão de vida significa afeto, solidariedade e objetivos comuns. Não pressupõe, necessariamente, a diferença sexual, nem tampouco a possibilidade de gerar filhos. Então por que o direito à herança e à partilha de bens (os quais já existem em relação às uniões estáveis entre homem e mulher) não podem ser estendidos aos relacionamentos entre pessoas do mesmo sexo? Qual a razão lógica para a distinção, considerando-se que em ambas existem verdadeira comunhão e objetivos comuns? Por acaso o sistema jurídico só protegeria os casais que visassem à procriação?
O Supremo Tribunal Federal está prestes a responder a essas indagações. Nesta semana deverão ser julgadas a Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental proposta pelo governador do Estado do Rio de Janeiro (ADPF n.º 132) e a Ação Direta de Inconstitucionalidade proposta pela Procuradora-geral da República (ADI n.º 4277). Ambas sustentam que o tratamento desigual viola os seguintes preceitos da Constituição Federal: direito à igualdade (art. 5.º, caput), direito à liberdade (art. 5.º, caput) e o princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1.º, III). Ou seja, pretendem a inclusão das uniões homoafetivas no regime jurídico da união estável (artigo 1.723 do Código Civil). Tal análise implicará também a correta interpretação do artigo 226, § 3º da Constituição Federal, o qual prevê a proteção do Estado para "a união estável entre o homem e a mulher, como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento".
Na verdade, o que está em jogo é o respeito ao princípio da dignidade da pessoa humana. A ausência de disciplina jurídica à realidade das uniões homoafetivas demonstra um juízo de desvalor e uma preconceituosa omissão. Daí a importância da atuação dos tribunais, aos quais cabe a tarefa de, interpretando a lei, construir o Direito. Assim já ocorreu no passado, quando não havia lei para regulamentar as uniões estáveis. Os tribunais formaram jurisprudência, impulsionaram a iniciativa legislativa e fizeram história. O mesmo se espera do Supremo Tribunal Federal em relação às uniões homoafetivas. Trata-se do respeito à dignidade de um grande número de pessoas que vivem, atualmente, à margem da lei.
Cabe aqui lembrar o que dispõe, desde 1948, o artigo 1.º da Declaração Universal dos Direitos Humanos: "Todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos".
Rogéria Dotti é advogada.
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