Muita gente gostaria de viver em um mundo no qual cada um contribui de acordo com sua capacidade, e recebe de acordo com a sua necessidade. Essa frase é de Karl Marx, e o desejo de redistribuição de renda nela contido, continua sendo defendido por pessoas que não conhecem sua origem e nem mesmo se consideram marxistas. Nessa realidade ainda utópica, todas as pessoas teriam acesso irrestrito a educação, saúde, transporte, segurança e outros serviços, todos produzidos e ofertados pelo estado. E caberia aos ricos, que têm maior capacidade contributiva, fornecer os recursos para bancar toda a conta.
Embasados por esse sentimento de equidade alguns costumam ver a tributação sobre grandes fortunas como uma possível via alternativa para lidar com o crescimento da desigualdade nos países. Notadamente, quando entramos em período de transição de governo, o tema recebe maior visibilidade. E está em evidência no Brasil, pois há um clamor romântico por parte da equipe de transição do governo eleito sinalizando em favor dessa taxação.
A bem da verdade, o assunto já vinha num crescente desde 2020, quando a pandemia de Covid-19 evidenciou discussões sobre a crise econômica e de políticas públicas de distribuição de renda, capitaneadas pelo auxílio emergencial. A coisa ganhou tanta repercussão que o Núcleo de Pesquisas em Tributação do Insper se dedicou ao estudo da matéria. Numa pesquisa desenvolvida em três etapas foram mapeadas as iniciativas legislativas brasileiras existentes; na sequência analisadas as experiências internacionais; e, na terceira etapa, a tributação de fortunas foi avaliada sob a ótica econômica.
As evidências internacionais não tornam o cenário melhor. O wealth tax, similar ao imposto sobre grandes fortunas (IGF), tem sido cada vez menos adotado.
Na primeira fase, foram identificados 54 projetos de lei que visam a tributação de grandes fortunas tramitando no Congresso Nacional. Somente no ano de 2020, em meio à pandemia, foram apresentados 25 desses PLs. E embora sejam muitas as propostas em trâmite, ainda há pouca convergência sobre o assunto. A análise dos projetos demonstrou que é bastante díspar a definição de grande fortuna. Por exemplo, enquanto um projeto compreende que grande fortuna equivale a um patrimônio superior a R$ 2 milhões, outro entende que somente patrimônios acima de R$ 10 bilhões seriam sujeitos à tributação. As propostas divergem também, entre outros pontos, sobre quem seriam os contribuintes do tributo e quais as alíquotas aplicáveis. A maioria dos projetos sequer contém previsão de arrecadação.
As evidências internacionais não tornam o cenário melhor. O wealth tax, similar ao imposto sobre grandes fortunas (IGF), tem sido cada vez menos adotado. Apenas três dos 38 países-membros da OCDE cobram wealth tax: Espanha, Noruega e Suíça. No caso desses dois últimos, o imposto é descentralizado e arrecadado pelos governos regionais, sendo cobrado somente de pessoas físicas. Entretanto, o potencial de arrecadação do imposto nesses países é baixo. Em 2019, o wealth tax foi responsável por 0,5% da arrecadação tributária da Espanha e 1,1% da arrecadação da Noruega. Na Suíça a arrecadação foi pouco mais representativa, com 3,8%.
Vale ressaltar que o IGF pode parecer atrativo por sua suposta justiça tributária progressiva, mas na prática esse tributo representa mais custo do que benefícios, justamente pela perda de ativos decorrente da fuga de capital. Em estimativas do governo Francês, mais de 10 mil pessoas abandonaram a França enquanto o Imposto sobre Grandes Fortunas estava valendo no país. A fuga de capital totalizou a retirada de 35 bilhões de euros de ativos, a exemplo do ator Gerárd Dépardieu, que se naturalizou cidadão belga e, posteriormente, russo para escapar do fisco. A situação era tão gritante que a taxação passou a ser apelidada de “imposto inglês” por ter estimulado a migração de fortunas para o país vizinho. Não à toa foi abolida em 2017, após a eleição de Emmanuel Macron.
No mundo real, o patrimônio dos milionários não está majoritariamente na forma de dinheiro parado no banco, mas na posse de imóveis, fábricas, instalações industriais, bens de capital.
Soa até ingênuo pensar que a tributação sobre grandes fortunas teria papel preponderante sobre a diminuição da desigualdade social no Brasil. Na verdade, criar um imposto sobre riqueza é tributar a criação de riquezas que serão geradas. A dinâmica de um imposto sobre fortunas é diferente daquela que incide sobre a renda, já que a base de cálculo sobre a qual a alíquota incide continua sendo o montante acumulado ano após ano.
Mas vamos tentar levar essa questão para um exemplo prático. Suponhamos que o governo federal comece a cobrar o Imposto sobre Grandes Fortunas, previsto na Constituição. Um empresário hipotético, o João, que é um homem muito rico, terá agora de pagar R$ 1 milhão a mais em impostos já no primeiro ano da vigência dessa taxação. É aí que começam as consequências não-premeditadas.
No mundo real, o patrimônio dos milionários não está majoritariamente na forma de dinheiro parado no banco, mas, sim, na posse de imóveis, fábricas, instalações industriais, bens de capital, caminhões, tratores, maquinários em geral e ações. Dado que o imposto está incidindo sobre um estoque (seu patrimônio), João terá de reduzir o seu consumo, presente ou futuro, para pagar o imposto. Mas apenas isso não basta. O segredo da análise econômica está em entender o que João precisará fazer para pagar esse novo imposto.
Suporemos inicialmente que o patrimônio de João esteja investido em sua empresa. Assim, ele precisará tirar R$ 1 milhão do seu negócio para entregar esse dinheiro ao governo federal. Como alguém tira dinheiro de sua empresa? Ele tem basicamente três escolhas: ele pode conseguir esse dinheiro reduzindo sua folha de pagamento ao longo do ano, ou reduzindo os investimentos, ou vendendo equipamentos e bens de capital em geral.
Perceba o óbvio que reduzir folha de pagamento significa reduzir salários ou demitir trabalhadores. Reduzir investimentos (compras de matéria prima, de bens de capital ou ampliação da capacidade produtiva) acarreta na redução das receitas e da produção de seus fornecedores, que por isso terão de demitir funcionários que se tornarão ociosos. Vender equipamentos e bens de capital também não apenas afeta a capacidade produtiva da empresa, como também diminui a produção das empresas que produzem esses materiais, causando ainda mais demissões.
João provavelmente optará por levantar dinheiro usando um pouco de cada uma dessas três saídas. Mas é importante perceber que, independentemente do que ele decida fazer, ele está causando desemprego ou redução de salários na economia para pagar o imposto. Essa é uma das consequências não-premeditadas de uma intervenção estatal desse porte na economia. Ao gerar atitudes que não ocorreriam voluntariamente em um livre mercado, toda a cadeia de produção econômica sofre uma perturbação.
Mas deixando de lado o nosso João hipotético, de concreto sabemos que existem três pontos já testados no mundo que são relevantes em relação a essa taxação: a complexidade de gestão, a baixa arrecadação e a fuga de capitais. A complexibilidade de gestão se verifica na necessidade de uma estrutura alargada para fiscalização e arrecadação do imposto. Interligação de bancos de dados, regulação, normatização, dentre outros podem chegar ao ponto em que a estrutura é mais dispendiosa do que o valor que é arrecadado.
Já a fuga de capitais revela um “prejuízo” não só na área fiscal quanto na área econômica. A fortuna que sai do país deixa de gerar ativos, empregos, juros etc., impactando diretamente na economia. Menos investimento gera menos empregos que gera menos consumo.
Portanto, dá para perceber que o discurso é bonito, mas a efetividade desse imposto não é real. O próprio Karl Marx, citado no início desse texto já dizia que "a história se repete, a primeira vez como tragédia, e a segunda como farsa". Não vamos cair nessa farsa a lá Robin Wood imaginando que Imposto sobre Grandes Fortunas vai tirar dos ricos para tornar mais justa a vida para os pobres.
Tatiana Goes, empreendedora e economista, é especialista em Gestão Estratégica de Negócios pela Universidade de Harvard e CEO da GoesInvest.
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