Desde os anos 1960 a prefeitura de Istambul usava a área de Ümraniye como depósito de lixo, já que, àquela época, esse local se distanciava quilômetros da localidade habitada mais próxima. Contudo, a rápida urbanização transformou a região numa grande e precária favela. Todos os órgãos públicos bem conheciam as implicações ambientais e de segurança ali envolvidas, mas nada se fez sob o argumento de não se saber ao certo de quem seria a responsabilidade pela eventual remoção da população ou do controle dos riscos.
Em abril de 1993, conforme previsto por experts, uma violenta explosão de gás metano acumulado no subsolo pela decomposição do lixo provocou a morte e destruiu a propriedade de inúmeras pessoas que habitavam o local. De todos, um caso teve especial destaque: o senhor MaÅallah Öneryıldız, que perdeu 13 familiares diretos no desastre (entre esposa, concubina e filhos), responsabilizou o Estado turco por violação do art. 2.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (CEDH), o qual lhe garantiria o direito à vida, e que fora descumprido à medida que o Estado não adotou as medidas necessárias para evitar o dano.
No Rio de Janeiro, há alguns dias, uma favela precariamente urbanizada e instalada sobre um antigo aterro sanitário veio abaixo por conta das chuvas torrenciais do último mês, matando centenas de pessoas. Não é possível ignorar as semelhanças com aquela triste experiência turca.
O Estado turco está obrigado à proteção da vida e da dignidade dos seus cidadãos, seja por seu próprio ordenamento, seja pela submissão à CEDH. Não se trata de mera obrigação negativa que o impede de torturar ou matar seus cidadãos, mas também positiva, que garante direitos prestacionais e medidas efetivas de proteção, obrigando o Estado a impedir mortes evitáveis. Na mesma situação se encontra o Brasil, por força da Constituição Federal e da Carta Interamericana de Direitos Humanos.
De outro lado, patente é o descaso das autoridades em ambos os casos. Tanto o risco de explosões em Ümraniye era sabido, quanto o desastre por enxurradas no Rio de Janeiro era perfeitamente previsível. Perigosas habitações empoleiradas nos morros por força de uma nítida exclusão social e geográfica e sujeitas a desgraças sazonais são comuns, como é também o descaso sistêmico do governo em reduzir riscos e proteger a população.
Dessas ocorrências, o óbvio se evidencia: de nada adianta existirem direitos à moradia/saúde se não forem de igual modo protegidos os direitos à vida/segurança. A estruturação de favelas (transporte, energia elétrica etc.), que produz voto, acaba como contrassenso quando fomentada sobre aterro sanitário de alto risco. Placebos eleitoreiros são prática comum, mas resolver o problema exige sempre mais e esbarra na noção da "reserva do possível". Esse coringa exculpante da administração pública está sempre presente e faz com que limitações orçamentárias impeçam um coerente investimento público na promoção dos direitos humanos. Por isso é preciso uma política ampla de garantia do cidadão, pois não bastam luz, asfalto e esgoto se a vida e o meio ambiente equilibrado estão em risco à espera de eleições. Repise-se: não se pode ignorar que a catástrofe no Morro do Bumba poderia ter sido evitada se o Estado tivesse cumprido suas obrigações mínimas de proteção ao cidadão segundo uma política de direitos humanos harmônica e coesa.
A decisão da Corte Europeia no caso Öneryıldız versus Turquia de 2002 responsabilizou o governo turco por lhe ter sido possível evitar as mortes se adotasse medidas positivas. Resta perguntar como o Judiciário brasileiro responderia se interpelado frente ao evidente rompimento dos deveres das autoridades brasileiras de proteger e garantir os direitos humanos em caso idêntico ao turco. Se fosse congruente com o sistema nacional e internacional de proteção dos direitos humanos, certamente deveria reconhecer a falha do Estado e determinar a indenização das famílias quanto aos danos sofridos. Mas isso leva tempo e, portanto, é necessário esperar.
Érica de Oliveira Hartmann, mestre em Direito Processual Penal, é professora de Direito Processual Penal e Prática Penal.
Guilherme Roman Borges, advogado, mestre em Filosofia e Teoria Geral do Direito, mestre em Sociologia do Direito, é professor de Economia
Rui Carlo Dissenha, advogado, mestre em Direito Penal, é professor de Direito Penal. Os três são membros do grupo de estudos de Liberdades Públicas e Direitos Econômicos na Universidade Positivo
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