“A volta dos que não foram...” É assim que vejo o resultado das eleições primárias na Argentina. Sobre a cabeça do Brasil e de todos os brasileiros paira a espada de Dâmocles, não da Venezuela, mas sim a da Argentina. Por diversas razões que não vêm ao caso elencar aqui, por ora, o Brasil não corre o risco de se tornar uma Venezuela, mas corre um profundo risco de se transformar numa nova Argentina. Ainda faltam três anos para as nossas eleições, e traçar um cenário é extremamente complicado, dada a impossibilidade de prever fatos determinantes. Quem poderia, por exemplo, prever o “Joesley Day” ou a intervenção federal no Rio de Janeiro, que simplesmente impediram a aprovação da reforma da Previdência? No Brasil, onde longo prazo equivale a um mês, três anos são uma eternidade. Mas é possível vislumbrar alguns movimentos e personagens que se movimentam tendo 2022 como norte.
O primeiro é o presidente Jair Bolsonaro. Com 30% de votos consolidados, e uma forte base popular (diga-se de passagem, exatamente igual em número à do PT), o presidente sabe que provavelmente sofrerá uma derrota caso enfrente no segundo turno um candidato do centro do espectro político, como, por exemplo, o governador de São Paulo, João Doria. Daí a insistência do presidente de pautar o debate com frases tidas, no mínimo, como discutíveis e até mesmo como inconvenientes, como as recentes falas envolvendo “cocôs”. O presidente segue duas estratégias: a primeira é permanecer no debate público e no imaginário social: quem não é visto não é lembrado. É a lógica do “falem mal, mas falem de mim”. Essa estratégia deu certo em 2018, tanto que o presidente quase ganhou no primeiro turno, a despeito de toda a rejeição que enfrentou e enfrenta por parte significativa da sociedade. A segunda estratégia é tensionar o debate e o corpo da sociedade, criando e inflando uma polarização social que lhe é benéfica. O presidente sabe que o seu adversário real não é a esquerda, mas o centro do espectro político, e ele sabe que a única chance de vencer em 2022 é enfrentar um PT ainda mais radicalizado que o de agora.
Ninguém duvida de que essa estratégia seja tão ambiciosa quanto arriscada. Qual é o fiel da balança, portanto? É a economia, mais precisamente os planos do ministro Paulo Guedes. Se as reformas liberalizantes que o ministro da Economia vem rapidamente implantando – como a reforma da Previdência, a minirreforma trabalhista (a MP da Liberdade Econômica), a minirreforma da Previdência (a MP do pente fino do INSS), a liberação do saque do FGTS, a queda da taxa Selic –, bem como as reformas que pretende implantar (como a independência do Banco Central e a reforma tributária), derem certo, e o Brasil crescer entre 3% e 4% já a partir do ano que vem, com a consequente forte redução do desemprego, a população “moderada” deve ser o fiel da balança e deve reeleger o presidente, a despeito de suas polêmicas. Porém, assim como na Argentina, se a economia não reagir, esta mesma população – especialmente em caso de segundo turno com o atual presidente – não hesitará em recolocar o PT no Palácio do Planalto.
O Brasil não corre o risco de se tornar uma Venezuela, mas corre um profundo risco de se transformar numa nova Argentina
O fantasma argentino deve assustar não só o presidente brasileiro, mas especialmente a equipe econômica, bem como todos aqueles que se interessam pelo crescimento e pelo desenvolvimento da economia brasileira. O ministro da Economia, se quiser ver mesmo a continuidade, bem como o aprofundamento da sua “liberal-democracia”, deve apressar e implantar o máximo de medidas possíveis na direção da liberalização e da modernização da economia. Qual será o saldo disso? O saldo das medidas modernizantes será o crescimento econômico, o desenvolvimento, a criação de milhões de empresas e de empregos, enfim, a saída do país da crise que nos assola desde 2014. Mas existe um porém: estas medidas demoram tempo para surtir efeito e a população brasileira, assim como a argentina, certamente não terá paciência caso o resultado dessas medidas demore a aparecer. Por isso, urge implantá-las o mais rápido possível, justamente para evitar o risco de retrocessos na economia.
Por que modernizar a economia? Por que não permanecer no atraso? Essa é uma pergunta que se insere no cerne deste debate público e que toca o principal problema do país no presente momento: o fato de o Brasil, além de ser um país extremamente desigual, se encontrar na chamada “armadilha da renda média”. O país não consegue crescer e, por isso, não consegue aumentar a sua renda per capita. Além disso, sem o crescimento, fica extremamente complicado executar as políticas sociais de distribuição de renda, como os benefícios previdenciários e assistenciais, o Benefício de Prestação Continuada (BPC, pago a idosos e deficientes em condição de miserabilidade) e o Bolsa Família. A primeira e a mais imprescindível política social é o crescimento econômico e a geração de empresas e de empregos. A prova disso vemos bem diante dos nossos olhos, com o verdadeiro “milagre social” que vem acontecendo na China e na Índia. Com o crescimento anual entre 6% e 7,5%, estes países vêm incluindo à economia global centenas e centenas de milhões de pessoas, arrancando-as da miséria que as escravizava desde priscas eras. E o que pôde efetuar tão grande “milagre social”? Nada menos que as (tão satanizadas por estas bandas) reformas liberalizantes, implantadas tanto na China comunista como na democrática Índia. Ambas abandonaram o modelo econômico socializante que só produziu fome, desespero e miséria. Calcula-se que na China o modelo de Mao Tsé-Tung causou a morte de cerca de 70 milhões de pessoas. Em vez de seguir o caminho intervencionista (peronista) da Argentina, que conseguiu a proeza de, em 70 anos, se tornar “ex-rica” (a Argentina de 100 anos atrás era um dos países mais ricos do mundo), o Brasil deve seguir o caminho oposto: se modernizar e caminhar na direção de países com alto padrão de renda e qualidade de vida, como Chile, Irlanda, Islândia, Nova Zelândia e Austrália.
O Brasil nunca, jamais, em tempo algum, foi “neoliberal” como afirma o mantra apregoado pela esquerda tupiniquim, de forma dogmática, acrítica e fechada ao debate. O máximo que aqui houve foram algumas poucas reformas de cunho liberalizante no início dos anos 1990, logo interrompidas com a ascensão da ex-presidente Dilma Rousseff à Casa Civil do Brasil, em junho de 2005. Que país “neoliberal” é este no qual a Previdência Social dispende anualmente mais de R$ 700 bilhões, onde mais de 25% da população recebe o Bolsa Família e em que o governo é dono de mais de 400 empresas estatais? Nunca houve nem sequer o chamado “liberalismo” por aqui. Tampouco “neoliberalismo”. Porém, é necessário dizer que o Brasil também não é ainda uma “social-democracia”. Não dá para culpá-la por nossos males. É bem verdade que a nossa Constituição de 1988, que restabeleceu o Estado Democrático de Direito, criou um programa de social-democracia, mas faz-se necessário dizer que nossa social-democracia ainda está em processo de implantação. Nosso problema real, diagnosticado por Raymundo Faoro, chama-se patrimonialismo (e suas variantes: coronelismo, clientelismo, mandonismo, etc.), ou seja, a apropriação do público pelo privado. Esta é a razão real do atraso no Brasil. Ainda existem por aqui “coronéis” como o ex-presidente José Sarney, cuja família dominou o Maranhão por nada menos que cinco décadas. Todas as propostas modernizantes e liberalizantes não buscam destruir a social-democracia. Visam atacar e destruir o patrimonialismo, essa apropriação do público pelo privado, da qual a corrupção é apenas o sintoma mais evidente. Libertar a sociedade do dominium deste Estado gigantesco e patrimonialista é imperativo para modernizar a nossa economia, para garantir o crescimento sustentável e contínuo, visando o desenvolvimento, o enriquecimento do país e do povo brasileiro, com o consequente aumento de nosso bem-estar social.
Negligenciar a modernização das nossas estruturas econômicas é flertar com o atraso. As forças populistas que hoje estão na oposição, quando instaladas no governo, se aliaram às figuras mais retrógradas que cupinizam há décadas o nosso país e o seu povo, como José e Roseana Sarney, Edison Lobão, Fernando Collor, Renan Calheiros, Jáder Barbalho, Paulo Maluf e tantos outros; promoveram não apenas o loteamento e o saque dos recursos do Estado brasileiro em nome de um projeto criminoso de perpetuação no poder, como mantiveram o nosso país no atraso, tendo como consequência a Grande Recessão Brasileira (2014-2017), da qual até hoje sentimos as consequências. A espada de Dâmocles argentina está bem em cima dos nossos pescoços. Que o ministro Paulo Guedes seja bem-sucedido no seu intento, para que a economia brasileira possa reagir, para o bem de nós todos que somos o povo brasileiro.
Dimitri Martins é Mestre em Administração, especialista em Gestão Pública e analista de Políticas Sociais no Ministério da Economia.