Ouça este conteúdo
A briga mais comentada da semana está em todos os veículos de comunicação e já circula em editoriais pelo mundo. A jornalista Miriam Leitão escreveu em sua conta no Twitter que Lula e Bolsonaro são incomparáveis, já que o presidente, segundo ela, é inimigo confesso da democracia. O deputado federal Eduardo Bolsonaro partiu em defesa do pai fazendo um comentário maldoso sobre o passado da colunista e publicou em resposta: “Ainda com pena da cobra”. A postagem faz referência à tortura sofrida pela jornalista durante a ditadura militar. Grávida, foi colocada nua em um quarto escuro junto com uma jiboia.
Não gosto de comparar pessoas, como fez Miriam Leitão, até por entender que o Lula e seu PT estão colados em crimes gigantescos. Mas o ponto aqui é outro: Eduardo Bolsonaro, funcionário público nomeado pelo povo, muito mais que enalteceu o regime militar. Ele apresentou a tortura como vítima de uma mulher sozinha na prisão, uma pessoa que foi abordada quando estava andando pela rua ao lado do marido e foi levada para ser interrogada numa delegacia sem mandado de prisão, sem processo formal instaurado contra ela. Naquela época era assim. O Estado tinha licença para tudo, até para matar.
O filho número três do presidente dispensa apresentações, pois inaugurou o seu estilo para o país desde o início do governo do pai. A primeira polêmica que Eduardo trouxe para o governo por suas conexões estourou logo nas semanas de transição. E ela tinha dois nomes: Steve Bannon e Filipe Martins. A ala mais tradicional da equipe do novo governo, que defendia uma abordagem pragmática das questões de política externa, estava alarmada com Martins. Ele tinha uma postura tão radical que recebeu o apelido de “Robespirralho” – uma mistura de pirralho com Robespierre, o líder da fase mais violenta da Revolução Francesa, o Terror. Martins defendia que o governo devia adotar uma postura de enfrentamento total com o status quo, similar à que Bannon tentara imprimir ao governo Trump, até ser demitido.
Eduardo é um grande entusiasta dessa visão. Já replicou nas suas redes sociais um vídeo em que policiais, durante um assalto a um restaurante, aparecem atirando em criminosos até derrubá-los no chão. Como quem acha que a violência é superior a uma sentença judicial, comemorou: “Esse é um dos raros momentos em que vemos a justiça sendo aplicada no Brasil. Um clássico”, disse.
Também disse que o Supremo Tribunal Federal poderia ser fechado com o emprego apenas de “um cabo e um soldado” – “não querendo desmerecer nem o cabo e nem o soldado”, emendou. Depois da eleição do seu pai, disse que a eventual radicalização da esquerda brasileira poderia ser respondida pelo governo “via um novo AI-5”. Nas duas situações, quando a repercussão negativa estava no auge, com todos os defensores da democracia protestando, Eduardo saboreava o barulho. Seu pai, no entanto, atentou para a maré de críticas e mandou que recuasse. No caso do STF, Eduardo pediu desculpas. No do AI-5, disse que “talvez tenha sido infeliz”.
Eduardo vem se mostrando cada vez mais radical e provocador e a persona que ele criou nas redes sociais passeia pelo grotesco. Esse afago à tortura é o exemplo mais recente e nos faz pensar até onde esse representante do povo pretende chegar. Se quer agradar seus seguidores mais radicais, só faz chover no molhado, vez que já está abraçado com a minoria barulhenta e intolerante. Isso pode até lhe ajudar na reeleição como deputado federal, mas atrapalha muito os planos de papai Bolsonaro.
O resultado mais consistente desses gestos é a rejeição até daqueles que reconhecem algumas importantes pautas e feitos do governo do seu pai, mas se afastam e rejeitam frontalmente a incoerência de quem diz defender o bem e a liberdade contra a iminência da ditadura petista enquanto afaga a tortura e o rompimento institucional, como se houvesse tiranos do mal e tiranos do bem.
Aos que insistem em acreditar que a truculência estatal é a única forma de buscar a paz, fica o convite para olharem o mundo atual e o passado e descobrirem que nenhuma nação se fez digna com esse modelo.
Alguns, ainda, dirão que Miriam Leitão tem aversão ao crescimento do país. Ocorre que não se trata de discutir isso aqui. Ela é livre para acreditar e defender o que queira, inclusive contratada e bem paga para tal. Assiste a seus programas e lê as suas colunas quem bem o quiser. Mas a questão aqui diz respeito ao ato de um deputado federal, filho de quem é, abraçar o discurso pró-ditadura e tortura.
Independentemente do instrumento constitucional, o que nunca podemos esquecer é que atentar contra a integridade física de uma pessoa constitui um ato incompatível com a civilização, seja qual for a situação hipotética imaginada pelos entusiastas do pau de arara. Torturar é crime grave; trancar uma moça de 19 anos numa cela escura com uma jiboia para amedrontá-la é crime grave. Não cabe piada nisso.
É possível que apareçam críticos desse artigo dizendo que eu virei a casaca. Que estou flertando com a esquerda por apoiar uma jornalista que claramente se opõe à reeleição do presidente. A esses gostaria de lembrar que eu defendi até o direito de expressão do deputado federal bolsonarista Daniel Silveira, que vive um enfrentamento com membros do STF. Igualmente defendo o direito de Eduardo dizer o que disse e rechaço a pretensão de alguns deputados de o punirem por opinião, como também me reservo o direito de repudiar suas palavras vergonhosas. Para mim, quem defende Chico tem de defender Francisco e quem tem bandidos de estimação não tem minha aceitação.
Diogo da Luz, agroempreendedor e piloto de linha aérea, foi candidato ao Senado em 2018.