A fala do CEO de uma plataforma de delivery, que disse em uma entrevista que em 10 anos as pessoas não iriam mais cozinhar, levanta muitas questões. A primeira delas já foi explorada pela apresentadora Rita Lobo, acerca do teor elitista e alarmista, além de ignorar as múltiplas proteções proporcionadas pelo ato de se cozinhar alimentos favoráveis em ambiente doméstico. Adiciono que essa fala desconsidera completamente a situação alimentar de grande parte da população brasileira desvelada pelo último Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar, que aponta mais de 120 milhões de pessoas em algum grau de insegurança alimentar e nutricional no país. Isso quer dizer que essas pessoas, que já possuem dificuldades de cozinhar em suas casas, jamais teriam a menor chance de se alimentar diariamente por meio de entregas de comida.
A segunda trata de uma prática comum a grandes corporações ligadas ao sistema alimentar dominante, que também previram o “fim da cozinha” para promoverem a entrada de alimentos ultraprocessados pela porta da frente, com destaque para a economia de tempo e a ascensão da mulher no mercado de trabalho como moedas de troca. O resultado disso, mais de meio século depois, foi exatamente a radicalização da produção e consumo deste tipo de alimento, que já causou e ainda causa muitos prejuízos sociais, culturais, sanitários, ambientais e políticos.
A terceira questão trata do crescente poder econômico e político dessas plataformas, que submetem seus trabalhadores, apesar de não os reconhecer como tais, a condições análogas à escravidão. Sujeitos ao frio, fome, sede, violência e morte cotidianamente. Enquanto essas empresas de entregas crescem vertiginosamente, mantêm os seus trabalhadores da ponta em situações humilhantes. Enquanto nega alimentação a eles, fazem lobby para impedir qualquer avanço em termos trabalhistas. Então quando o CEO diz que “ninguém mais vai cozinhar”, de quem exatamente ele está falando? Dos trabalhadores? Das classes B ou C? Obviamente que não. Ela faz vistas grossas a esse grande contingente de pessoas famélicas, pois se é capaz de ignorar a fome de seus próprios trabalhadores, que dirá de outros grupos.
Essas três questões, portanto, levantam um debate central: para além do tom alarmista ou exagerado, a fala é uma demonstração do poder político e econômico não somente dessa empresa, mas de todas as empresas de plataforma ao redor do mundo que realizam diariamente uma acumulação primitiva e violenta de capital, travestida de modernidade e praticidade, disposta a ousar ditar os rumos das práticas alimentares das pessoas e, consequentemente, de sua situações alimentares, visto que pesquisas já dizem que as plataformas forçam o consumo de refeições inadequadas à saúde e à cultura alimentar de seus clientes. Ela é um termômetro de demonstração de poder e do grau de ameaça ao direito humano à alimentação adequada. Por isso, precisamos questionar: o fim da cozinha para quem? E para quê?
Vanessa Daufenback é socióloga, nutricionista, doutora em Saúde Pública e professora do curso de Nutrição da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR).
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