Quando Brayan estava com nove anos, em 2016, sua mãe foi brutalmente estuprada e assassinada em Honduras. O corpo foi encontrado em uma fossa séptica. Quando o menino a viu no caixão, o rosto estava tão desfigurado que não a reconheceu. Estava grávida de sete meses. Foi aí que começou a ter pesadelos e medo do escuro. O namorado da mãe já a agredira e foi detido por causa do crime, mas alegou que a morte fora “coisa de gangue” e foi liberado. Só que passou a ameaçar Brayan e o pai dele, José, que prometeu levar o garoto para a segurança dos EUA. A oportunidade de viajar aconteceu este ano.
Durante a Semana Santa, no fim de março, a dupla engrossou a caravana de centenas de centro-americanos que atravessam o México para chegar aos EUA. Quando alcançaram a divisa com a Califórnia, em maio, José, pronto a obedecer às leis, seguiu o conselho dos especialistas em imigração e se apresentou às autoridades como requerente de asilo. Só que os agentes da Patrulha de Fronteira se recusaram até a olhar as cartas oficiais que explicavam o caso, segundo ele. Ficou detido vinte dias, foi forçado a assinar papéis em inglês que não entendia e deportado para Honduras. Brayan foi levado para um abrigo infantil em Maryland.
Agora ele é uma das mais de duas mil crianças – e esse é o cálculo modesto – que foram separadas das famílias por causa da campanha de tolerância zero do governo Trump contra os imigrantes em situação irregular. Em 26 de junho, um juiz federal em San Diego decidiu que essas famílias fossem reunidas, no máximo, em trinta dias, ainda que um advogado do Departamento de Justiça tenha reconhecido que não há procedimentos formais para cumprir a ordem.
A história de Brayan, obtida através de entrevistas com o próprio menino, seu pai e a avó – cujos sobrenomes não foram divulgados porque são considerados ilegais –, mostra a má vontade da administração em levar o processo de reunificação adiante e o motivo por que a política atual é desnecessariamente traumatizante para milhares de crianças e suas famílias.
A política atual é desnecessariamente traumatizante para milhares de crianças e suas famílias
A avó do garoto, Rosa, de 48 anos, também é uma imigrante em situação irregular, mas está fazendo o que pode para patrociná-lo e levá-lo para sua casa, na Flórida; o problema é a burocracia, que prova ser um verdadeiro pesadelo.
Uma assistente social do abrigo de Maryland – cujo nome está sendo mantido sob sigilo para proteger o jovem – disse a Rosa que, para obter a custódia do neto, teria que lhe proporcionar um quarto próprio. Assim, ela desistiu do apartamento de um quarto que alugava por US$ 400/mês e se mudou para um de dois dormitórios, a meia hora do antigo, por US$ 1.200/mês. Para isso, precisou apresentar um contrato, coisa difícil para estrangeiros sem visto, e obter um atestado de bons antecedentes. Também foi obrigada a apresentar comprovante de renda, outra dificuldade para imigrantes em sua situação. Para conseguir pagar o triplo com moradia, começou a trabalhar mais, e nos fins de semana. Primeiro a assistente social lhe disse que não ganhava o suficiente, mas depois afirmou que, trabalhando tanto, não teria muito tempo para ficar com o neto.
Rosa também tem uma filha de oito anos com o antigo companheiro, detalhe que, segundo a mesma assistente, pode pesar contra a obtenção da custódia de Brayan. Por causa disso, ela pediu ao pai da menina uma declaração, registrada em cartório, afirmando que tinha responsabilidade financeira total pela menina. Aí a funcionária abandonou o caso durante um mês, para voltar a ele só recentemente.
“Comecei a achar que não iria conseguir, que era impossível. Chorava todo dia, Não conseguia dormir. Ficava olhando para o relógio, pensando no meu neto apodrecendo lá”, ela me confessou. Exigiram que Rosa desse o nome de outro responsável, que fosse cidadão norte-americano, em caso de sua deportação. “Não tenho medo de voltar. Podem me mandar de volta para Honduras quantas vezes quiserem porque voltarei quantas vezes forem necessárias pelo meu neto.”
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As autoridades do abrigo explicam que as regras de reunião das famílias são muito rígidas para evitar que as crianças sejam levadas por traficantes humanos, preocupação que vem desde 2014, com a leva de menores desacompanhados que assolou o país. Acontece que a grande maioria, se não todas as que foram levadas para abrigos durante o governo atual, não chegaram sozinhas; foram separadas à força dos pais, que ou foram presos ou deportados. No caso delas, como no de Brayan, que tem parentes nos EUA, as chances é que esses sejam de baixa renda, sem visto e não tenham acesso à representação legal.
“As crianças sem documentação, mas com representação, têm cinco vezes mais chances de sucesso em seus casos, mas o peso financeiro que eles representam simplesmente os tornam inacessíveis para as famílias de estrangeiros ilegais e carentes”, afirma Jennifer K. Falcon, diretora de comunicação do Centro de Imigrantes e Refugiados para Serviços Legais e de Educação. (O grupo, conhecido como Raices, concordou em oferecer assistência legal à avó de Brayan.)
Em telefonema recente, Brayan descreveu as condições de vida no abrigo, dizendo que tem quarto próprio, cômoda e um rádio. Aliás, segundo ele também, muitas crianças se trancam sozinhas para chorar depois das conversas telefônicas com os familiares, que acontecem duas vezes por semana. As refeições consistem em cereal no café da manhã e sanduíche de presunto no almoço e no jantar. Quando liguei para ele, ouvi os pequenos chorando ao fundo. A voz de Brayan parecia cansada, talvez porque estivesse deprimido ou exausto de tanto chorar. Contou que todo mundo recebia uma pílula por dia “para não ficar doente”. Rosa teme que os comprimidos sejam sedativos porque o garoto tinha medo de dormir sozinho desde a morte da mãe, mas não parecia estar tendo problemas no abrigo. A administração local negou a oferta de remédios aos jovens.
Muitas crianças se trancam sozinhas para chorar depois das conversas telefônicas com os familiares, que acontecem duas vezes por semana
Brayan também revelou que ele e outros garotos têm de varrer, passar pano no chão e limpar os banheiros. Com isso, recebem do abrigo uma “mesada” de US$ 7/semana, dinheiro que usam para comprar guloseimas e complementar as refeições mirradas, que os deixam sempre com fome. E me disse que assumiu a tarefa de consolar os recém-chegados mais novos, dizendo-lhes que seus pais não iam gostar de vê-los chorando. “As crianças aqui estão tristes; choram muito. Eu lhes digo que vamos sair logo. Peço a Deus todo dia que me tire daqui e me ajude a encontrar minha avó o mais rápido possível.”
A questão é se o governo vai permitir que isso aconteça, e, se sim, quando. O pai de Brayan me disse querer que o garoto more com a avó, inclusive tendo pedido a um advogado que fizesse uma carta atestando esse desejo antes de saírem de Honduras. Mas não há garantias de que as autoridades acedam. A pobreza e a pele escura são fortes impedimentos no sistema de adoção e acolhimento familiar.
Tina Lee, antropóloga que compara o sistema de assistência infantil ao de “policiamento e encarceramento”, me contou que mesmo os parentes dos pequenos sendo cidadãos norte-americanos estão com dificuldades de obter a guarda deles por causa da discriminação contra os pobres e pessoas de cor. “Ou seja, é tão ou mais difícil do que para aqueles que não têm amparo da lei.”
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Mais perturbador ainda é o fato de o Departamento de Saúde e Serviços Humanos, responsável pelas crianças, e o Departamento de Segurança Interna, terem concordado em divulgar informações e dados, inclusive dos parentes em situação ilegal que brigam pela guarda dos jovens, o que certamente representa uma ameaça de deportação. Rosa garante que não se intimida, mas nem todo mundo pensa assim. Para a Comissão Feminina de Refugiados e o Centro Nacional de Justiça para os Imigrantes, é óbvio que “para o governo, as crianças são vistas apenas como suspeitos ou como iscas”.
Em Honduras, José conta que vai de casa para o trabalho e volta só pensando no dia em que voltará a ver Brayan, imaginando segurar o filho em um abraço apertado. E repete a cena na cabeça vezes sem fim. Ele sonhara com uma vida nova ao lado do filho; hoje, separados pelas fronteiras, só torce para que o menino consiga uma chance ao lado da avó. E pensar que talvez nunca mais o veja lhe dói demais.
“Brayan está triste. Desesperado mesmo. E eu me sinto culpado. Fui eu que o coloquei nessa situação.” Tento convencê-lo do contrário, pois o menino lhe foi simplesmente tirado. “Só tenho vontade de chorar, mas de que adianta? Não sou religioso, mas rezo. Seria o homem mais feliz do mundo se o visse parado na minha porta agora.”