O terremoto no Haiti vitimou uma das personalidades brasileiras mais importantes na defesa dos direitos humanos: a médica sanitarista Zilda Arns, catarinense de For­­quilhinha, que dedicou toda a sua vida à saúde pública. No início dos anos 80, dom Paulo Evaristo Arns lançou o convite para que a irmã, que já acumulava experiência com trabalhos comunitários, montasse um plano nacional para combater as principais causas da mortalidade infantil no Brasil: diarreia e desidratação. Em 1983, ganhava vida o programa que lograria notoriedade universal – a Pastoral da Criança.

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O que era um projeto do interior paranaense espalhou-se por todo o Brasil e ganhou o mundo, a partir de uma ideia simples e inteligente: formar formadores. A metodologia empregada foi a da multiplicação solidária do conhecimento sobre saúde, nutrição, educação e cidadania para as comunidades mais pobres, baseada no trabalho voluntário e na ação de líderes comunitários. O resultado estava na criação de condições para que as próprias comunidades protagonizassem sua transformação social.

Dessa forma, a trajetória e o legado de Zilda Arns foram peças decisivas para a construção do movimento social em defesa dos direitos da criança e do adolescente no Brasil, contribuindo para o reconhecimento de sua condição como verdadeiros sujeitos de direitos humanos, e traduzindo para a realidade o que já estava previsto formalmente em vários documentos nacionais e internacionais. Sua bandeira principal foi o combate à mortalidade infantil, à desnutrição e à violência familiar por meio da educação, num contexto social de desigualdades, desinformação e preconceitos, promovendo o desenvolvimento humano num país cravejado pela miséria.

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Hoje a Pastoral da Criança mobiliza mais de 260 mil voluntários, que acompanham cerca de 2 milhões de gestantes e crianças e 1,4 milhão de famílias pobres, em mais de 4 mil municípios brasileiros. O modelo já foi exportado para 20 países da América Latina e da África. Em 2004, Zilda Arns inaugurou nova trilha na proteção dos direitos de pessoas com mais de 60 anos, com a fundação da Pastoral da Pessoa Idosa, que acompanha atualmente mais de 129 mil idosos com a ajuda de 14 mil voluntários.

Por sua marcante luta pelos direitos humanos, especialmente nos polos da vida em que a condição de vulnerabilidade é maior – infância e terceira idade – Zilda Arns recebeu incontáveis prêmios importantes, tendo sido indicada ao Prêmio Nobel da Paz por mais de uma vez. Não fora agraciada, lamentavelmente. Barack Obama, por sua vez, foi escolhido com seis meses de mandato, no comando de duas guerras que já mataram mais de 2 milhões de civis e na iminência de um terceiro conflito no Iêmen. A escolha constrangeu o laureado, desmoralizou o prêmio e afrontou a consciência humanitária geral. Talvez a premiação póstuma de Zilda Arns – quebrando a tradição – fosse uma boa forma de devolver o prestígio ao Nobel da Paz.

Zilda Arns morreu na luta pelos direitos humanos, em ação humanitária no Haiti. Morreu como viveu: junto dos pobres e excluídos, e poeticamente no país mais miserável do hemisfério ocidental, vítima da maior tragédia local dos últimos 200 anos. Sua caminhada nos mostra que existem muitos Haitis em nosso Brasil continental. Inevitável lembrar de Caetano e Gil, que há quase 20 anos já anunciavam que "o Haiti é aqui..."

Larissa Ramina, doutora em Direito pela USP, é professora da UniBrasil.