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O historiador que influencia apologistas como Kanye West

Kanye West | /Divulgação
Kanye West (Foto: /Divulgação)

O vídeo do rapper Kanye West discutindo a escravidão é um triste lembrete da amnésia histórica dos EUA em relação à realidade brutal dessa instituição. “Quando você ouve falar que a escravatura durou 400 anos, a impressão que se tem é a de que foi uma escolha”, diz ele no trecho que vem circulando exaustivamente no Twitter.

West parece sugerir que os afro-americanos escravizados estavam tão satisfeitos que não resistiam ativamente ao cativeiro e, como consequência, são parcialmente responsáveis por séculos de perseguição.

Ele não é o único a pensar assim. Em 2016, o ex-apresentador da Fox News Bill O-Reilly afirmou que os escravos eram “bem alimentados e tinham acomodações decentes”. Em setembro passado, o candidato ao Senado pelo Alabama Roy Moore disse que a era pré-Guerra Civil foi um período excepcional da história norte-americana. “Acho que era fantástico, as famílias eram unidas. Mesmo com a escravidão, nós nos preocupávamos uns com os outros”, declarou.

Os eruditos modernos já desbancaram essa negação da realidade, descrevendo a escravatura com precisão como uma instituição desumana gerada pela ambição, resultando na subjugação de milhões de negros.

Entretanto, inúmeros norte-americanos não aprenderam essas lições; em vez disso, se apegam a uma interpretação romantizada, a que muitos responsabilizam um livro lançado há cem anos.

West parece sugerir que os afro-americanos escravizados estavam tão satisfeitos que não resistiam ativamente ao cativeiro

No início de 1918, o historiador Ulrich Bonnell Phillips publicou seu estudo seminal, “American Negro Slavery”, no qual mostrava a instituição como um acordo de trabalho benevolente entre senhores indulgentes e escravos felizes. Nenhum outro livro, monumento ou filme – com exceção, talvez, de “... E o Vento Levou”, também inspirado na obra de Phillips – exerceu maior influência sobre a forma que os norte-americanos encaram a escravidão.

Nascido em 1877, em uma família de fazendeiros da Geórgia, Phillips desenvolveu uma intensa simpatia pelo Velho Sul; estudou História na Universidade da Geórgia e, mais tarde, em Columbia, tendo como tutor William A. Dunning, estudioso de tendências pró-sulistas.

Depois de conquistar o doutorado, em 1902, Phillips se dispôs a corrigir a ideia tendenciosa do passado da região, que ele acreditava prevalecer na época. “A história dos EUA vem sendo escrita por Boston, de forma totalmente equivocada. É essencial que seja recontada antes que estabeleça seu formato final de verdade – e, para isso, o Sul tem de fazer a sua parte”, afirmou.

Sem dúvida foi o que fez. Durante os trinta anos de sua carreira, publicou nove livros e quase 60 artigos, conquistando uma série de cadeiras universitárias de prestígio que culminou em um “trabalho muito brilhante”, como ele mesmo descreveu, na Universidade de Yale. Essa indicação, em 1930, refletiu sua importância como principal historiador da escravatura e do Sul no país, como também a influência de seu livro mais importante, “American Negro Slavery”.

Phillips foi um pesquisador prodigioso, ainda que seletivo; encontrou nos registros das fazendas e diários de viagens da época evidências que reforçavam a interpretação benigna que deu à escravidão, confirmada no livro, e minimizou as provas do contrário. Em suas mãos, as plantações se tornaram locais idílicos onde as famílias brancas definiram os hábitos da vida civilizada para os negros por quem eram responsáveis, e que tratavam como filhos. “As plantações foram a melhor escola já inventada para a educação em massa daquele povo meio inerte e atrasado que responde pela maioria dos negros norte-americanos”, escreveu.

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Segundo ele, os fazendeiros ofereciam aos escravos acomodações confortáveis e alimentação farta, raramente recorrendo à disciplina física. Quase nunca vendiam os escravos, principalmente quando isso implicava em separar famílias. As regras dos senhores eram “benevolentes na intenção e benéficas no efeito”.

O uso que Phillips faz da voz passiva – “em março, os milharais geralmente eram semeados...” – distancia ainda mais o leitor do trabalho forçado. O escravo, por sua vez, mostrava gratidão e lealdade a seus senhores. E concluiu dizendo que, embora a escravidão tenha sido economicamente ineficaz, “as relações de ambos eram baseadas em uma responsabilidade agradável”.

“American Negro Slavery” foi amplamente aclamado no Norte e no Sul. Os críticos elogiaram Phillips por sua pesquisa minuciosa, o estilo charmoso, a lucidez e falta de tendenciosidade. Nas palavras do historiador John David Smith, especializado na obra de Phillips, o livro representou o “relato definitivo da instituição peculiar” desde a Primeira Guerra Mundial até os anos 50.

A obra definiu o tom do tratamento que a escravidão recebeu nas salas de aula e livros didáticos em todo o país. “Há muito que se dizer da escravatura como transição entre o barbarismo e a civilização. A maioria dos escravos aparentemente era feliz”, mantém um best-seller de 1930, repetindo Phillips quase literalmente.

Desde o início, porém, ele teve muitos críticos, que insistiam em contar uma história mais verdadeira e crua. W.E.B. Du Bois fez uma crítica devastadora a “American Negro Slavery”, afirmando ser “uma defesa à escravidão nos EUA, a uma instituição que, na melhor das hipóteses, foi um erro e, na pior, um crime”. Baseado em entrevistas com ex-escravos – fontes que Phillips rejeitou –, o historiador Frederic Bancroft publicou em 1931 um livro que arrasou com as deturpações do comércio escravocrata nacional feitas pelo outro autor.

Seus críticos se tornaram mais explícitos nos anos 50 e 60, quando a nova geração de acadêmicos passou a desafiar sua leitura benigna da escravidão e do racismo que tingia praticamente todas as páginas de sua obra-prima.

Porém, embora grande parte da importância tenha se perdido, o legado de “American Negro Slavery” prova resistir ao tempo.

Temos que combater as caracterizações errôneas da natureza da escravatura

Segundo um novo relatório da organização especializada em direitos civis Southern Poverty Law Center sobre a forma como a escravidão é ensinada nas escolas, a metodologia atual continua baseada na perspectiva dos brancos, e não dos escravos; além disso, não relaciona a instituição à crença supremacista que a embasa. Os livros didáticos geralmente ignoram a intenção dos fazendeiros de faturar e não têm pudor de utilizar construções gramaticais do tipo “os africanos foram trazidos para os EUA”, absolvendo assim os escravizadores de suas ações.

No ano passado, uma professora de Charlotte pediu aos alunos do ensino médio que enumerassem “quatro motivos por que os africanos deram bons escravos”; outra, em San Antonio, passou uma tarefa intitulada “A Vida dos Escravos: uma Visão Equilibrada”, pedindo que alunos do oitavo ano fizessem uma lista dos aspectos “positivos” da escravidão, ao lado dos “negativos”.

Temos que combater as caracterizações errôneas da natureza da escravatura, seja aquela nutrida na sala de aula, ou a que é disseminada pelo Twitter. Afinal, a correção histórica sobre o assunto não é só uma questão de registrar o passado fielmente, mas também entender os desafios do presente.

A persistência da desigualdade racial nos EUA – que vai desde a violência policial à segregação nas escolas, passando pelo encarceramento em massa e a iniquidade de renda – reflete, até certo ponto, a insistência de validação da visão de Phillips. Se a instituição foi pouco mais que uma graduação para os afro-americanos, então por que reconhecer ou corrigir seu legado pernicioso hoje?

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