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O homem cordial: como a história portuguesa ajuda a entender a política brasileira

Retrato de D. João I de Portugal.
O Brasil segue o mesmo padrão dos reinos medievais de outrora, onde os vassalos reconhecem e aceitam pacificamente seu papel de sujeição. (Foto: Reprodução)

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Sérgio Buarque de Holanda foi um dos maiores historiadores e sociólogos do Brasil, famoso por formular o arquétipo do "homem cordial" brasileiro. Em Raízes do Brasil, descreve como a linhagem portuguesa, em especial em sua interação com o índio e o africano, era caracterizada por sua capacidade de ir das mais afáveis demonstrações de carinho e generosidade às mais coléricas, repletas de violência e sadismo em questão de segundos.

Raymundo Faoro, um dos únicos que dividem com ele a primeira prateleira de pensadores brasileiros, tem um enfoque no patrimonialismo português-brasileiro: como as relações de poder sempre se deram de forma pessoalizada, informal, não-institucionalizada, discricionária e centralizada. A análise de ambos os autores se complementam, sendo a do primeiro mais centrada no indivíduo e a do segundo no funcionamento do país como um todo – um tratado do desenvolvimento econômico, político e social de duas nações presas ao absolutismo e ao mercantilismo.

O que temos hoje é a continuidade desse mesmíssimo Estado patrimonialista, fundado em relações de cordialidade entre as elites.

Em 6 de abril de 1385 acontece algo inusitado no Reino de Portugal. Com a morte do rei D. Fernando, a sucessão caberia à rainha D. Leonor e, dela, à única filha do casal, D. Beatriz, casada com o rei de Castela. Isso significaria que, em pouco tempo, Portugal se reunificaria a Castela e seria o fim dos mais de duzentos anos de independência portuguesa. A corte real de então, reunida em Coimbra, decide fazer uma votação e elege D. João I, o Mestre de Avis, rei de Portugal. D. João era filho ilegítimo de D. Pedro, pai de D. Fernando (portanto, meio-irmão deste). Por lei, não tinha direito à sucessão, mas foi empossado por um movimento "democrático" da corte e deu início a uma nova linhagem que se estenderia por mais duzentos anos, a Dinastia de Avis.

Em regra, reinados se iniciam por meio de conquista – D. Afonso Henriques, o primeiro rei de Portugal, foi chamado "O Conquistador", um grande general em batalha, famoso por suas batalhas contra os reinos espanhóis e "mouros" (árabes/berberes muçulmanos). O fato de a sucessão ser hereditária permite que o trono passe de um líder militar beligerante a seus descendentes mais focados na burocracia e na administração do país (apesar de ainda se envolverem em eventuais guerras de expansão ou de defesa territorial). Isso garante, em tese, uma maior estabilidade e um mais prolongado período de paz, o que seria benéfico para o povo (é provável que tenha sido pela falta de critérios de sucessão "automática" ou hereditária  que o maior império continental que já existiu, o dos mongóis, tenha durado tão pouco tempo).

Nunca fomos governados por leis e instituições impessoais, como defendiam os ingleses, mas por homens com interesses bastante mesquinhos

A Dinastia de Avis "rompe" com a dinastia anterior de forma aparentemente democrática, com as elites decidindo, em um "acordão", derrubar D. Leonor e violar a lei sucessória. Não foi algo de pequena relevância substituir uma dinastia significava contrariar a própria autoridade do papa e da Igreja Católica, que eram quem, em última instância, reconheciam o direito divino dos reis e rainhas.

Uma "proto" democracia para legitimar a subida ao trono de um rei português em pleno século 14 seria algo bastante avançado até mesmo se comparado à democracia parlamentarista inglesa, que só existia para, basicamente, referendar a majoração de impostos da Coroa, jamais para decidir quanto à sucessão do poder.

Neste país, não é a lei que vigora; são os favores, as graças, os indultos, os humores, os laços de sangue, de confiança, de lealdade.

Contudo, quem vislumbra traços democráticos em um processo de "eleição" de um rei não deve se deslumbrar com isso: Portugal e seus filhos (nós) sempre adotamos, a partir de então, o método patrimonialista, absolutista e antidemocrático de governo. Primeiro, um ato formalmente eletivo, uma votação com uns poucos ares de legitimidade; em seguida, a cessão de todo o poder discricionário e ilimitado, sem controle, um "cheque em branco" para o líder fazer não o que quiser, mas o que for preciso para manter o status quo: a manutenção das elites burocrática e empresarial (irmã siamesa da primeira), a defesa de seus interesses perante o povo e perante o concorrente estrangeiro.

Enquanto o rei estiver "jogando o jogo", ele será bem-vindo. Sua manutenção no trono dependerá de quão bem alinhado ele estiver com o compromisso com as elites. Da mesma forma, a manutenção dessas elites também depende de seus laços de amizade com o centro de poder, com a Coroa. É uma mútua relação de dependência que mantém o caráter de normalidade e continuidade apesar das mudanças formais de dinastias, de Constituições e de formas de governo (monarquia/república).

Nossas revoluções nunca foram revoluções de fato. Desde a dinastia de Avis, passando pela Independência em 1822, a República em 1889, o golpe de 1964, o retorno da administração civil em 1985. A exceção fica por conta de 1930. Getúlio Vargas foi o único que realmente rompeu com o pacto entre as elites e os governantes antes de si, mas criou pactos semelhantes com uma nova elite e não rompeu com o sistema patrimonialista. Deixou de dar um passo além e adotar um sistema liberal, moderno, impessoal, um verdadeiro Estado de Direito.

O que temos hoje é a continuidade desse mesmíssimo Estado patrimonialista, fundado em relações de cordialidade entre as elites, que reconhecem em si, apesar das rivalidades e disputas, a chave para a manutenção do status quo do qual depende seu sustento. O Estado de Direito, como acontece desde 1891, continua sendo uma mera peça de ficção escrita numa folha de papel (as sucessivas Constituições). Nunca fomos governados por leis e instituições impessoais, como defendiam os ingleses, mas por homens com interesses bastante mesquinhos e, acima de tudo, a necessidade de se perpetuar no poder.

Para sobreviver, numa nação patrimonialista, é preciso conquistar o favor de seu suserano. O Estado (ou melhor, as autoridades que trajam as vestes de Estado), assim como o senhor da Casa Grande, tanto pode te convidar para se sentar à mesa e compartilhar do festim (a pilhagem das massas) quanto pode te amarrar a um tronco de árvore e te açoitar ou te condenar a 17 anos de prisão por tirar uma selfie desavisadamente numa praça durante um movimento que, estivesse usando bandeiras vermelhas, seria considerado "manifestação democrática e legítima" (como já foi em inúmeras ocasiões, incluindo 2013).

Neste país, não é a lei que vigora; são os favores, as graças, os indultos, os humores, os laços de sangue, de confiança, de lealdade. O Brasil segue o mesmo padrão dos reinos medievais de outrora, onde os vassalos reconhecem e aceitam pacificamente seu papel de sujeição, "votando" formalmente ao mesmo tempo em que se ajoelham para as autoridades das quais seus privilégios e regalias dependem: resignados, tremendo e implorando por dentro para que o cetro ou a espada que lhes toca o ombro não lhes amasse ou corte a cabeça.

Aerton Zambelli L. O. Costa é bacharel em Direito, especialista em Controle, Detecção e Repressão a Desvios de Recursos Públicos e mestrando em Direito Internacional.

Conteúdo editado por: Jocelaine Santos

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