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Ele chegou de longe, trazendo a mulher, doente e sofrida, para a cirurgia indicada e urgente. Na portaria do hospital explicou, humilde e triste, sua situação difícil e embaraçosa. A moléstia pegara-lhe desprevenido...

Viera pois, esperando e confiando. Tinha de vir, de qualquer maneira... Não iria, contudo, dar prejuízo a ninguém... Dispunha de bom patrão que à hora certa compareceria infalivelmente para as despesas e para o acerto.

A declaração era segura na fala de um homem trigueiro e mirrado, que exuberava pureza nos enleios de sua comunicação cabocla e desajeitada. Comunicação típica e peculiar, indelevelmente marcada por uma gagueira de singular comicidade.

O fraseado pitoresco, ganhando forças na gesticulação expressiva, a gaguez incontrolável e pertinaz, aliada a uma compostura de atitudes respeitosas, emprestavam àquele homem um toque de irresistível simpatia.

Durante os dias em que permaneceu no hospital, deu mostras de ser excelente criatura. Solícito e agradável, conquistou amigos e fez admiradores, espargindo risos nas graças de suas histórias, transmitindo consolo e conforto nas atenções fidalgas de sua maneira educada.

Esposo extremado, cercou a companheira de carinhos e desvelos, demonstrando, nas mais variadas situações, todas as provas de bom caráter e de ser boa gente.

Nos enredos de seus "causos", um nome emergia sempre com as maiores honrarias e merecimentos: o "dotô Albeltinho", seu patrão e amigo, também seu padrinho, a quem não poupava os melhores elogios e apreços.

Imbuído do mais vivo reconhecimento por tudo o que dele teria recebido, esbanjava sua eterna gratidão, conferindo-lhe virtudes inestimáveis.

E quando se dizia que o padrinho iria lhe faltar por ocasião da alta, revidava confiante: "É que vocês não conhece o dotô Albeltinho" – e lá vinham as exaltações ao "melhor homem do mundo".

No dia esperado, compareceu pontualmente ao hospital o dr. Alberto. Jovem na altura dos 30 anos, distinto e sóbrio, revelava de pronto o indivíduo fadado aos grandes lances da vida, ao sucesso, ao êxito. Nas revelações de sua personalidade a marca do cidadão nascido e preparado para a liderança, para as decisões, para a fortuna. À sua presença o gago tanto exultou de alegria, quanto se perdeu na subserviência, ajoelhando-se e beijando-lhe as mãos. Nunca havia imaginado tantos desmandos de humildade e servidão.

A tais exageros respondia o dr. Alberto com imperturbável moderação, aceitando com paciência os festejos do servo ao qual dispensava tratamento normal e humano. Foi assim que o atendeu na saída do hospital, tudo pagando e acertando, além do transporte próprio até a fazenda longínqua, a 200 quilômetros de distância.

Os dias passaram céleres e a sucessão de clientes e trabalhos sepultaram rápido no esquecimento o gago miúdo e falante, suas histórias, sua mulher e seu amo. Quatro meses depois, levado pelas andanças da medicina no interior, cheguei certa noite a São Jerônimo da Serra.

No salão mal iluminado do único hotel da cidade, comentava-se o crime impressionante, cuja brutalidade comovera todo o povo da região. No dia anterior um capataz, a golpes de foice, degolara seu patrão e proprietário da fazenda.

"O senhor o conhece", disse-me o farmacêutico. "É o gago. Aquele que esteve com a mulher em seu hospital. Ele matou o dr. Alberto ontem de manhã. Está preso na cadeia."

Ao visitá-lo encontrei-o já no pátio, estimado dos guardas e de todos, usando e abusando daquela incrível vocação de fazer amigos em qualquer parte. Recebeu-me com ruidosa alegria e incontida amabilidade, na expansão habitual de seu bom humor perene.

E, na voz entrecortada pela gagueira, foi contando e rindo, insensível e grotesco, a façanha estúpida que não deplorava nem escondia: "Pois é de vê, seu dotô que matei o padinho Albeltinho. Ele veio dizendo celtas coisas de que não gostei. Eu tava memo com a fouce na mão. Foi só dá um golpe com tuda folça na nuca e lá se foi ele plô chão. Uma sanguela danada, seo dotô. Nunca maginei tanta. Mas o mió, seo dotô, aconteceu quando folam ponhá o padinho na camionete. A cabeça dele tava plesa só pol um tiquinho ansim. Não segulalan deleito e ela pendeu solta plá trás. Daí que eu imaginei, agora é que cai memo a cabeça do padinho Albeltinho".

E interrompeu-se descontrolado, na explosão da gargalhada insana, demente, irreprimível. Não sei se ainda existe esse gago maneiroso e gentil, incorrigível conquistador de simpatias, e amizades. Nem sei que misteriosos impulsos teriam despertado, nos escaninhos do seu cérebro, a besta e a fera que lá dormitavam dóceis e serenas.

Lauro Grein Filho é presidente Cruz Vermelha e do Instituto Histórico e Geográfico do Paraná.

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