A absolvição do senador Renan Calheiros, a despeito das evidências cristalinas de que suas relações financeiras com um lobista eram inexplicáveis, é um acinte, um desrespeito à inteligência da população, uma bofetada no rosto da nação que, ingenuamente, acreditou que seus representantes na Câmara Alta honrariam o mandato popular pondo fim a um dos episódios mais deprimentes de nossa história política ao longo de 185 anos de independência. Os 40 senadores que absolveram Renan Calheiros e os 6 que se refugiaram na pusilanimidade da abstenção voltaram as costas ao robusto relatório no Conselho de Ética e à decisão da maioria absoluta de seus membros que recomendaram a cassação do mandato do senador acusado. Agora, seus apoiadores públicos e discretos estão claramente aliviados. Oligarcas como José Sarney e sua filha Roseana (aquela do caso Lunus, também nunca explicado de maneira convincente) viram sua sobrevida política assegurada enquanto antigas esperanças de renovação na política brasileira, como Aloízio Mercadante, desnudaram suas verdadeiras crenças e valores; outros simplesmente confirmaram o prognóstico, como dizem os turfistas. Uma vergonha.
Era impossível enganar-se: em quatro meses, Renan Calheiros produziu sucessivas e contraditórias versões para os mesmos fatos, as quais foram se alterando e ajustando à medida que as anteriores eram demolidas por novos testemunhos, documentos e revelações da imprensa. Quando apegou-se à versão de que seus rendimentos declarados eram complementados por vendas de gado, as inconsistências eram tão grandes que a "explicação" não poderia ser levada a sério. Os documentos que supostamente confirmavam as tais vendas não resistiram ao primeiro sopro da investigação técnica de peritos criminais, ruindo como um castelo de cartas.
Apesar de tudo isso, 46 senadores não acreditaram que algo de podre tivesse acontecido no reino brasiliense. Curiosamente, mesmo pessoas altamente versadas em investigações criminais, como o senador Romeu Tuma, deixaram-se conduzir infantilmente para caminhos e raciocínios tortuosos durante o processo. Em vez de tentar comprovar que a versão de Calheiros de que era dele o dinheiro fornecido ao lobista e repassado à amante , o que seria facílimo, bastando exigir os extratos bancários em que as saídas estivessem registradas, o Senado preferiu concentrar-se numa confusa tentativa de provar que Calheiros tinha recursos para fazê-lo. Ora, qualquer criança sabe que entre alguém ter feito alguma coisa e ter a capacidade de fazê-lo existe uma distância infinita. E assim, de mistificação em mistificação, Renan Calheiros chegou à absolvição não se pejando de valer-se da cátedra de presidente da mais alta Casa do Parlamento para imiscuir-se na apuração do ocorrido, recorrendo a todos os artifícios e artimanhas processuais possíveis para dificultar a investigação, embaralhar fatos e versões e evitar que a verdade viesse à luz.
Mas a população não vai deixar isso assim. Renan Calheiros pode ter se livrado da perda de seu mandato graças ao espírito corporativista da maioria de seus pares, mas nunca se livrará da memória coletiva dos brasileiros, que lhe imporá um estigma que nunca poderá esconder. Os senadores que o absolveram, preferindo desconhecer a robustez das evidências, a contundência do relatório e o resultado da votação no Conselho de Ética, nunca se livrarão da convicção geral de que prestaram um enorme desserviço à democracia ao deixar claro que o parlamento é incapaz de extirpar seus próprios tumores. Para manter uma velha tradição de impunidade, que os brasileiros pensavam estar com seus dias contados após o histórico voto do Supremo Tribunal Federal no caso dos mensaleiros, os senadores que absolveram Renan Calheiros demonstraram que a população não pode confiar na ação autodepurativa do parlamento. Os milhões de indivíduos que, lutando com enormes dificuldades para levar sua vidinha ordeira, mourejando de sol a sol para manter e educar suas famílias e tendo de resignar-se à insuficiência e à má qualidade dos serviços públicos, não mereciam assistir a essa convalidação do deboche e da desfaçatez, de desrespeito com seu dinheiro e de agressão à sua inteligência.
Mas uma pergunta martela o espírito de muita gente, inclusive o meu: de onde vem tanto prestígio do senador Renan Calheiros? Será que ele sabe alguma coisa que nós, pobres mortais, não sabemos?
Belmiro Valverde Jobim Castor é professor do doutorado em Administração da PUCPR.