A pandemia do coronavírus trouxe uma série de incertezas, com reflexos imediatos na economia. As consequências são ainda imprevisíveis. O Brasil está sob estado de calamidade pública e a maior parte dos estados e capitais decretou estado de emergência, com a recomendação de quarentena, em obediência às diretrizes do Ministério da Saúde. O Paraná e Curitiba determinaram, primeiramente, o fechamento de shopping centers, vilas gastronômicas, salões de beleza, academias, bares e casas noturnas. Posteriormente, o governo do estado deixou a cargo da iniciativa privada a suspensão dos serviços e atividades reputadas como não essenciais.
O decreto estadual se valeu do mesmo conceito do decreto federal para definir os serviços e atividades essenciais como sendo aqueles indispensáveis ao atendimento das necessidades inadiáveis da comunidade, assim considerados aqueles que, se não atendidos, colocam em perigo a sobrevivência, a saúde ou a segurança da população.
Ainda que não haja uma proibição expressa de suspensão às lojas e restaurantes de rua, muitos proprietários se viram obrigados a fechar as portas, tendo em vista a inviabilidade de manter a operação em funcionamento normal, o que apenas agravaria o prejuízo já experimentado em razão do isolamento, diante do potencial de contágio. Mesmo que se optasse pela abertura do estabelecimento, não haveria fluxo suficiente de pessoas e alguns estabelecimentos estão sendo hostilizados em redes sociais por se manterem abertos e não colaborarem com a recomendação de quarentena.
Trata-se, evidentemente, de uma situação de caráter extraordinário e imprevisível, que ultrapassa a esfera do risco da própria atividade econômica. Ainda que haja uma cláusula contratual para resguardar o locador na hipótese de força maior ou de caso fortuito, há entendimento jurisprudencial de que tal disposição não se aplicaria a epidemias, tendo em vista a necessidade de manutenção da ordem e preservação da saúde pública.
Nessa esteira, o Superior Tribunal de Justiça possui firme entendimento no sentido de que “a cláusula rebus sic stantibus permite a inexecução de contrato comutativo – de trato sucessivo ou de execução diferida – se as bases fáticas sobre as quais se ergueu a avença alterarem-se, posteriormente, em razão de acontecimentos extraordinários, desconexos com os riscos ínsitos à prestação subjacente”, de acordo com o julgado no Recurso Especial 849.228/GO, em 2010, que teve como relator o ministro Luís Felipe Salomão.
O isolamento trouxe impactos drásticos ao faturamento desses estabelecimentos, pois até mesmo as encomendas on-line e o serviço de delivery, que representam normalmente um porcentual menor da receita, foram substancialmente afetados.
Os proprietários dos estabelecimentos em imóveis locados terão dificuldades, portanto, em honrar com o pagamento dos aluguéis e demais obrigações contratuais, razão pela qual algumas redes de shopping centers anunciaram medidas de isenção ou de redução do custo de ocupação. Do mesmo modo, muitos locadores de pontos comerciais entenderam que devem cooperar com os locatários no sentido de zelar pela preservação do negócio do locatário e, consequentemente, da relação locatícia.
Há, por outro lado, aqueles que não estão considerando a excepcionalidade das circunstâncias e têm se demonstrado inflexíveis, ignorando que a situação exige o reequilíbrio das prestações contratuais diante do cenário extraordinário, que impede o funcionamento normal desses estabelecimentos.
Seja como for, as partes devem buscar o diálogo para minimizar as probabilidades de conflito judicial. O locatário pode levar ao proprietário do imóvel todas essas ponderações, inclusive por notificação extrajudicial, na expectativa de que a questão seja tratada com o esperado bom senso.
A situação clama por um dever de cooperação, dentro do imperativo ético-jurídico de solidariedade e responsabilidade contratual. O locador deve entender que a sua colaboração pode ser fundamental para a preservação do contrato, prevenindo litígios longos e onerosos, bem como evitando, em última instância, a vacância do ponto comercial. É válido se supor que, na hipótese de rescisão do contrato, o locador encontraria sérias dificuldades no reaproveitamento econômico do imóvel, diante da imensa oferta de imóveis para locação comercial e, principalmente, em face da recessão anunciada.
O reequilíbrio pode ser alcançado pela concessão de descontos, prazos de carência, suspensão dos pagamentos ou até mesmo pela isenção do aluguel por determinado período, com o afastamento de multas e outras penalidades, mediante convenção entre as partes ou pela mera liberalidade do locador, cuja postura de inflexibilidade poderá lhe custar prejuízos ainda não vislumbrados, provavelmente maiores do que os advindos de um aditivo contratual temporário.
Situações semelhantes já foram objeto de análise pelos tribunais brasileiros durante a epidemia da gripe H1N1, por exemplo, que foi caracterizada como fato superveniente e extraordinário. Se os precedentes endossam o entendimento de que uma epidemia vai ainda além de uma situação de força maior ou de caso fortuito, o que se dirá de uma pandemia com estas proporções. As consequências da disseminação do vírus quebraram, portanto, o equilíbrio econômico dos contratos, dificultando sobremaneira o cumprimento das prestações.
O artigo 317 do Código Civil consagra a teoria da imprevisão e autoriza a intervenção judicial, mesmo quando não se possa falar em vantagem excessiva para o locador ou em lucro exorbitante, pois não há dúvidas de que se trata de uma situação excepcionalíssima, que impõe a aplicação do Código Civil, de modo cogente.
Com base nesse dispositivo, a análise das condições concretas do negócio exclui o perigo de um julgamento fundado apenas em considerações de ordem subjetiva, de modo que, diante da resistência do locador, as prestações poderão ser readequadas pelo juiz, a pedido da parte lesada, conforme expressamente disposto no artigo 317, que assim dispõe: “Quando, por motivos imprevisíveis, sobrevier desproporção manifesta entre o valor da prestação devida e o do momento de sua execução, poderá o juiz corrigi-lo, a pedido da parte, de modo que assegure, quanto possível, o valor real da prestação”.
Em comentários à referida norma legal, a Professora Judith Martins Costa, no volume V dos Comentários ao Novo Código Civil, frisa a necessidade de aplicação do instituto como forma de manutenção da igualdade entre as partes (artigo 5.º, caput, da Constituição Federal): “Daí a necessidade de o Estado, por meio do juiz – e fundado em considerações de justiça social –, intervir na economia da relação obrigacional, adaptando-a ao contexto econômico-social no qual se desenvolve dinamicamente, a fim de cumprir sua função de produção e intercâmbio de produtos, serviços e direitos. (…) É precisamente o que ocorre com a concreção e interpretação do artigo 317: no seu momento aplicativo, o intérprete deve levar em conta os princípios que orientam a ordem econômica, traduzidos no solidarismo ou na socialidade antes apontados e que, no campo contratual, encontram maximização, por via da boa-fé, no princípio do equilíbrio contratual, do qual decorre o dever de reequilibrar o contrato. É justamente esse direcionamento hermenêutico que deve incidir na análise das condições de incidência da regra ora comentada”.
A configuração do fato extraordinário e imprevisível dispensa obviamente a observância do artigo 19 da Lei 8.245/91, que trata do ajuste do preço do aluguel ao de mercado após o prazo de três anos. Não há qualquer incompatibilidade entre esse dispositivo e a norma do artigo 317 do Código Civil, especialmente quando, no caso concreto, houver uma situação tão anômala como a que se verifica. Antes mesmo da vigência do Código Civil de 2002, a jurisprudência pátria já se posicionava pela possibilidade excepcional da revisão judicial com base na teoria da imprevisão, desconsiderando-se o prazo trienal estabelecido pela Lei do Inquilinato, aplicável à hipótese específica e dentro de uma situação de normalidade.
O locatário poderá, portanto, invocar a tutela jurisdicional para pleitear a revisão judicial do contrato por período a ser determinado pelo juiz, com pedido de tutela provisória de urgência (conforme o artigo 300 do CPC), fundamentado na imprevisão, bem como nos princípios da cooperação, proporcionalidade e razoabilidade, preconizados pela boa-fé objetiva e pela função social do contrato (conforme os artigos 421 e 422 do Código Civil), no sentido da preservação dos interesses econômicos e sociais envolvidos.
Daniel Marques Virmond é advogado atuante em Direito Civil e Comercial, com especializações em Direito Empresarial, Direito Econômico e Direito Tributário.
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