Em 18 de dezembro de 2019, o Supremo Tribunal Federal decidiu, por maioria de votos, que pode ser considerado crime contra a ordem tributária o fato de a empresa declarar e não recolher aos cofres públicos o Imposto de Circulação sobre Mercadorias e Serviços (ICMS) devido em suas operações. No entendimento do tribunal, tendo o contribuinte cobrado o valor do imposto do consumidor e não tendo efetuado o devido repasse ao ente estatal, está configurada a apropriação indevida de montante que não lhe pertence, incidindo no crime previsto no artigo 2.º, II, da Lei 8.137/1990.
O voto que prevaleceu é o do ministro Luís Roberto Barroso, relator do caso, o qual entendeu que crimes tributários não são crimes de pouca importância, e o calote impede o país de “acudir as demandas da sociedade”. No entendimento do ministro, o ICMS não faz parte do patrimônio da empresa, que é mera depositária do valor, devendo repassá-lo ao Fisco estadual.
Essa decisão adveio do julgamento do Recurso Ordinário Constitucional 163.334, no qual uma empresa do setor de vestuário havia deixado de recolher o ICMS próprio algumas vezes ao longo dos anos de 2008 e 2010, totalizando uma dívida de aproximadamente R$ 30 mil à época. Nesse caso específico, os sócios da empresa figuraram como réus no processo criminal.
Apesar disso, o tema ainda vem sendo debatido, especialmente por tocar nessa linha tênue que é o ilícito tributário-penal, nos fazendo questionar: quando efetivamente o ilícito tributário vira um crime?
A ideia de infração ou ilícito tributário se relaciona com o não cumprimento de determinadas prestações, ou seja, é todo comportamento omissivo ou comissivo que represente um desatendimento de deveres jurídicos previstos em normas relativas à tributação. Assim, embora esteja fixada a compreensão dos tribunais superiores sobre o tema, a mera inadimplência configurará uma atividade ilícita do ponto de vista administrativa, não constituindo atividade criminosa se devidamente declarado.
A configuração de um crime contra a ordem tributária exige, além do não recolhimento do tributo, a incidência de alguma ação fraudulenta, como a sonegação fiscal ou, ainda, a falsificação de notas fiscais.
Todavia, o tratamento de certas condutas como se criminosas fossem, a partir da fixação do entendimento do STF, configura verdadeira violação ao princípio da estrita legalidade penal, incorrendo em grave analogia em desfavor do acusado, já que a criminalização de condutas no direito brasileiro depende de criação de lei pelo Congresso Nacional, não pelo Judiciário.
Não fosse o suficiente, o que se vê ainda é verdadeiro favorecimento da prisão por dívidas, criminalizando a mera inadimplência e se revelando uma estratégia útil para os fins arrecadatórios do Estado, instaurando-se verdadeira política criminal arrecadatória, desvinculando-se do fim do direito penal e utilizando-o de forma simbólica. Isso se dá em razão da legislação brasileira, que prevê a extinção da punibilidade na seara criminal quando o agente realiza o pagamento do tributo devido. Basicamente: pagando o imposto, o contribuinte deixa de responder pelo crime.
Justamente por isso, inúmeros casos de ilícitos administrativos são encaminhados diariamente ao Ministério Público, que oferece denúncia, tornando uma demanda de interesse criminal. Acaba-se por equiparar, portanto, a mera inadimplência à evasão fiscal, chegando-se até a prejudicar o empresariado brasileiro, especialmente em tempos de crise, haja vista a difícil escolha do empreendedor em quitar seus impostos sob o receio de não ver contra si uma condenação penal, muitas vezes até com restrição de liberdade, ou cumprir devidamente com sua folha de pagamentos interna, correndo riscos de responder a uma ação penal.
Camila Martins é mestre em Direito na área de Estado, Jurisdição e Poder, e especialista em Direito Tributário e em Direito Penal Econômico.
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