As obras de ficção costumam ter a capacidade de apontar os problemas da sociedade. Poucos compreenderam isso como Russell Kirk, autor que tem atraído um número crescente de leitores brasileiros após a publicação em português dos livros A era de T. S. Eliot: A imaginação moral do século XX e A política da prudência. Kirk é considerado a principal influência teórica para a formação do movimento conservador norte-americano.
O conservadorismo para Kirk é a negação de todas as ideologias e, ao mesmo tempo, a tentativa de preservar os princípios morais e as instituições sociais fundamentais da civilização ocidental. Para isso, destaca o tema da imaginação moral, que, por intermédio de mitos, fábulas, alegorias e parábolas, transmite as normas apreendidas pela tradição para as gerações vindouras. Algumas produções cinematográficas e séries de televisão assumiram um papel mais impactante na formação da imaginação moral do que romances, poemas, peças teatrais ou óperas. Nesse particular, dois filmes atualmente em cartaz podem ser analisados do ponto de vista da imaginação moral e ajudar a detectar alguns problemas de nossa época.
O primeiro é 007 Contra SPECTRE, última película do espião britânico James Bond, criado por Ian Fleming. Comparado aos filmes anteriores estrelados por Daniel Craig, este pode ser considerado o melhor e mais fiel ao espírito original da série, pois recupera a virilidade da personagem. A imaginação moral da narrativa se manifesta no senso de dever, na obsessiva busca da verdade, na fidelidade às promessas feitas até aos inimigos e na proteção da amada e dos amigos, virtudes que são levadas pelo agente secreto até o autossacrifício por aquilo que é o correto.
O novo “Jogos Vorazes” e “007 Contra SPECTRE” lidam diretamente com a tentativa governamental de monopolizar e manipular a informação
O segundo filme é Jogos Vorazes: A Esperança – Parte 2, a segunda metade da parte final da versão para as telas da trilogia de livros de Suzanne Collins. O papel da protagonista Katniss Everdeen, interpretada pela bela e talentosa Jennifer Lawrence, mais uma vez consegue apresentar os dramas psicológicos e morais que marcam a ação da rebelde heroína. Seguindo a tradição dos romances distópicos, a narrativa de Collins apresenta diversas questões filosóficas sobre a importância das escolhas morais e a liberdade individual, tangenciando discussões sobre família, religião, controle social, centralização política, violência governamental, planejamento econômico, manipulação genética e destruição do meio ambiente. A simbologia católica apresentada no decorrer da trama, menor nos filmes se comparada aos livros, é um dos fatores que faz de Jogos Vorazes a obra com o maior grau de imaginação moral entre as distopias dos últimos anos.
Existe um ponto em comum importante nos dois filmes e que merece ser tratado, visto que é um alerta para a conjuntura política brasileira atual. Jogos Vorazes: A Esperança – Parte 2 e 007 Contra SPECTRE lidam diretamente com a tentativa governamental de monopolizar e manipular a informação, além de ressaltar que, muitas vezes, os aparentes aliados são criminosos tão perigosos quanto os adversários políticos.
Nos últimos anos, inúmeras medidas estatais ou projetos de lei tentaram aumentar o controle governamental da imprensa e da internet no Brasil; muitas delas apoiadas por políticos da oposição. A liberdade de imprensa, assim como a liberdade econômica, é um fator necessário para a sobrevivência da liberdade individual dos cidadãos e da liberdade política da comunidade.
Assim, devemos lutar, negando votos a todos os políticos que tentam, de algum modo, usurpar tais direitos, excluindo-os da vida pública. No entanto, mais importante que a mudança democrática é a limitação do poder governamental, pois, quanto maior a possibilidade de controle estatal sobre a sociedade, mais chances de arbitrariedades, de desperdício e de corrupção.
Kirk ressaltou a necessidade de lutar contra o agigantamento estatal e evocou a coragem e imaginação dos conservadores “para impedir o triunfo dos centralizadores; pois tal triunfo seria seguido, bem rapidamente, pela decadência da república”. O fundamento último da natureza desse problema se encontra na famosa sentença de Lorde Acton ao afirmar que “o poder tende a corromper, e o poder absoluto corrompe absolutamente. Grandes homens são quase sempre os homens maus, mesmo quando exercem influência e não autoridade, e, ainda mais, quando se acrescenta a tendência ou a certeza de corrupção pela autoridade”.