Prezado Jair,
Se a burocracia fosse uma bebida alcoólica, certamente ela estaria entre as mais fortes, e ninguém com bom senso deveria tomar mais do que um gole. Nenhum ser humano é imune à embriaguez causada por títulos, crachás e regalias burocráticas. Se receber um copo de água de coco na recepção de um hotel na Bahia já faz com que nos sintamos especiais, imagine governar um dos maiores países do mundo e estar cercado por pessoas que lhe chamam de “mito”!
Qualquer remetente sincero precisaria iniciar esta carta com um elogio: não é difícil perceber que você, Jair, continua sendo a mesma pessoa que desafiou o sistema e venceu uma eleição presidencial promovendo lives na sala de estar. No entanto, um grave perigo ronda-o, e você só poderá eliminá-lo se tiver coragem de encará-lo no espelho. Quem venceu as eleições foi você, Jair, mas, em alguns momentos, quem parece governar é o tal “presidente Bolsonaro”. Os dois podem até parecer a mesma pessoa, mas não o são.
Jair adentrou o Jornal Nacional com um livro infantil nefasto embaixo do braço e palavras-chave escritas a caneta na palma da mão. Jair voltou a trazer Deus para o debate público, sendo um dos primeiros a lembrar-se de que mais de 90% da população crê nEle. Jair desmistificou a esquerda, ousou pronunciar a palavra “família” e, de quebra, admitiu: não sabia muito, mas se cercaria de pessoas que sabiam mais do que ele.
Ao adotar tais posturas, Jair estava blindado. Suas promessas foram específicas. Ele não investiu em abstrações, tampouco negou que ajustes precisariam ser feitos. Como resultado, milhares de pessoas foram às ruas em prol da reforma da Previdência, algo sem precedentes em um país que sempre foi acusado de cultivar uma cultura imediatista.
Jair detinha um capital político tão grande que, ao demitir seu ministro mais popular, acabou fortalecendo-se com a divulgação de uma reunião ministerial na qual defendia a liberdade da população, mesmo sem imaginar que aquelas imagens seriam vistas por todo o país.
Jair sempre foi odiado pela mídia pela sua capacidade de falar o óbvio. Durante a pandemia mais surpreendente do século, ele acertou na imensa maioria das vezes. Acertou ao defender a liberdade – e nunca a obrigatoriedade – do tratamento precoce. Acertou ao alertar que economia e vida eram sinônimos. Acertou ao fazer questionamentos relevantes sobre as ações de governadores.
Mas o tal “presidente Bolsonaro” ainda estava no meio do caminho. E foi ele o principal responsável pelos momentos mais decepcionantes dos últimos anos.
Foi o presidente Bolsonaro que promoveu a imperdoável nomeação de Kassio Nunes Marques ao STF, dando um petisco ao monstro que já o devorava. Foi o presidente Bolsonaro que se calou enquanto um jornalista era preso pelo STF e quase morreu na prisão. Foi este mesmo personagem que chegou a desdenhar de críticas justas daqueles que eram os verdadeiros responsáveis pela sua presença naquela cadeira.
Mesmo com todos os defeitos, o presidente Bolsonaro ainda é, de longe, o menos questionável desde a redemocratização. Afinal, escolheu um ministério técnico, adotou uma agenda virtuosa e certamente teria feito mais se não fosse o levante inédito dos demais poderes da República.
No entanto, aqueles que colocaram o Brasil em um novo rumo percebem que o presidente Bolsonaro continua te atrapalhando, Jair. Ele pode ser útil em reuniões de cúpula e solenidades, mas não foi ele que venceu as eleições, e tentar impô-lo à sua base é cometer estelionato eleitoral.
É a você, Jair, que a grande mídia persegue; é a você que a esquerda teme. É você que encarna valores com os quais a imensa maioria da população brasileira concorda. Você é um gigante político, mas o presidente Bolsonaro não assusta sequer um gatinho. Ele se ilude com a popularidade angariada pelo auxílio emergencial pois, ao contrário do cascudo Jair, não sabe que esta fatia da população não hesitará em xingá-lo no exato momento em que os R$ 300 pararem de cair na conta.
Os aliados de ocasião podem dar ao presidente Bolsonaro estabilidade jurídica e até mesmo um pouquinho da embriaguez burocrática que tanto vicia, mas jamais lhe darão respaldo, legitimidade e votos. Eles não lhe darão isso porque eles próprios não têm isso!
Arthur Lira pode ser mais fiel que Rodrigo Maia (e assim esperamos), mas é tão irrelevante quanto ele. Kassio Nunes pode ser mais coerente que Celso de Mello, mas é tão distante da realidade quanto ele. O novo presidente do Senado deverá ser mais íntegro do que Davi Alcolumbre (não é tão difícil), mas possivelmente será tão instável quanto ele.
É importante ter governabilidade, mas não se esqueça de que foram as Tias do Zap que o levaram ao governo. Por ora, elas continuam espalhando mensagens, pois sabem que a grande mídia se tornou um panfleto e que a narrativa pelo impeachment é tão falsa quanto o choro do Doria, mas elas estão cada vez mais inteligentes e já entenderam que bandeiras estão – e sempre estarão – acima de pessoas.
Cuidado, Jair. Somente o presidente Bolsonaro pode tirar de você um lugar privilegiado na história.
Arthur Vivaqua é pastor, teólogo e consultor de estratégia e marketing aplicados à educação.