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Desde que entrei para as fileiras da Polícia Militar de São Paulo, e lá se vão 29 anos, tendo combatido o crime diretamente, como soldado, cabo e hoje no posto de capitão, apesar de todos os esforços das polícias, só assisti a segurança pública piorar como um todo. Escrevi artigos, livros, participei de palestras e debates, pesquisei, tentando explicar e descobrir as causas de sermos um dos países mais violentos do mundo. Os fatores são múltiplos, mas coloco em primeiro lugar a impunidade, seguido da corrupção, desinteresse político, leis excessivamente benéficas, descontrole do Estado, territórios tomados pelo crime organizado, sistema penitenciário falido e também dominado pelo crime, ideologia política a favor do crime como uma ferramenta de revolução social, mídia contaminada ideologicamente, e por aí vai.
Apesar de alguns esforços com a chegada de políticos da área da segurança no Congresso, e até uma redução histórica dos índices dos homicídios durante o governo Bolsonaro, meu otimismo durou pouco. Dois fatores, até então colocados um pouco de lado, apresentaram-se com força total nos últimos anos e dão demonstrações de que são preponderantes para a total falência de nossa segurança, podendo ser risco para a segurança nacional. O primeiro é o risco iminente de nos tornarmos um narcoestado. Sempre que possível alerto sobre esse perigo. Somos o segundo maior país maior consumidor de drogas, estamos cercados pelos maiores produtores de drogas do mundo e nosso presidente é amigo de seus chefes de Estado, todos envolvidos com o tráfico.
É fato que boa parte do Sistema Judiciário virou um entrave para a segurança pública e os reflexos disso serão avassaladores.
O segundo é o ativismo judicial com viés socialista, utilizando uma palavra bonita – garantismo – como argumento para soltar criminosos, muitos deles chefes do crime organizado. Exemplos disso é a proibição pelo STF da polícia realizar operações nos morros cariocas, bem como aceitar a recomendação do CNJ e liberar mais de 32 mil presos durante a pandemia do Covid-19. O ministro Luís Roberto Barroso, por exemplo, chegou a afirmar em uma live que “defende uma política de não prisão a pequenos traficantes” e os casos que avalia “com 110gr, meio kg ou 1kg” não decreta prisão preventiva, e se condenado o infrator o regime será aberto.
Parece que outras cortes ficaram a vontade para “empurrar a história” nesse sentido, exigindo ações cirúrgicas da polícia, determinando a necessidade de justificar milimetricamente o porquê de uma abordagem e caso não se convençam trancam a ação ignorando que o “suspeito” tenha sido detido com grande quantidade de drogas.
As decisões da 6ª Turma do STJ são de arrepiar. Em uma delas, soltou um homem que levava dentro de sua mochila 72 porções de cocaína, 50 de maconha, e uma balança de precisão entendendo que “denúncia anônima e intuição policial” não justificam a busca pessoal. Ou seja, o poder discricionário do policial referente a uma atitude suspeita, não vale mais nada. Em 2020, a turma já havia concedido habeas corpus coletivo, garantindo o regime aberto para o “pequeno traficante”, que abrangia os condenados e aos futuros sancionados por tráfico privilegiado. Uma luz de bom senso iluminou o ministro Alexandre de Moraes, do STF, e ele derrubou esse veto do STJ ao regime fechado.
Em 2021, trancaram uma ação penal por nulidade em que a guarda municipal seguiu o carro de traficantes, e um deles, aparentando nervosismo, saiu do carro e entrou em uma casa. Foi abordado pelos guardas e com ele foi encontrado tabletes de maconha. Concederam liberdade para um traficante que transportava 311kg de cocaína e confessou que recebeu R$ 50 mil pelo serviço. Absolveram um condenado a 6 anos por tráfico que foi pego com 21 kg de maconha, pois sua companheira não havia autorizado a entrada do policial. Mas houve, sim, autorização e o traficante tentou fugir ao avistar os policiais.
O Tribunal Regional Federal segue nesse mesmo sentido. Em 2021, em Itaguaí (RJ), policiais federais vigiavam um galpão, avistaram dois carros que entravam e saíam. Em seguida, viram policiais civis que investigavam o mesmo caso. Os civis, bem como os federais, invadiram o galpão. Encontraram 695 kg de cocaína e prenderam os três homens que estavam nos carros. O TRF-2 anulou a apreensão e soltou os presos. A relatora do caso, desembargadora Simone Schreiber, assim justificou a decisão: "Diante de todo o exposto, considero que os policiais federais não conseguiram justificar de maneira clara, concreta e objetiva, para além da referência a informações de inteligência policial e ao ingresso prévio da Polícia Civil ao local, que estavam diante de uma situação de flagrante delito cuja urgência de sua cessação justificasse o ingresso forçado no galpão e a consequente relativização do direito fundamental à inviolabilidade do domicílio. Em decorrência disso, é forçoso reconhecer a ilegalidade do ingresso dos agentes policiais civis e federais no galpão, das provas ali colhidas e das que são derivadas".
Agora, em 14 de junho, o desembargador do STJ, Sebastião Reis Júnior, mandou soltar Leonardo Vinci Alves de Lima, o Batatinha, um dos líderes do PCC. Ele cumpria pena de 10 anos de prisão, foi preso por policiais da ROTA, com mais de 2kg de cocaína. Os policiais suspeitaram do traficante por seu comportamento nervoso e realizaram a abordagem. Para o desembargador, assim como para outros do STJ, o tirocínio policial e a fundada suspeita, nada mais valem. Decidiu assim que as provas (2 kg de cocaína) foram ilícitas. Fora a questão da abordagem, vale lembrar que o crime de tráfico de drogas é crime permanente, e o flagrante delito sempre descaracterizou algo que poderia ser considerado abuso, como a própria busca pessoal ou a invasão a domicílio.
A PM atua em ação direta contra o crime, praticamente em abordagens policiais a pessoas em atitude suspeita. Só para ter uma ideia, de janeiro a agosto de 2022, a PM do estado de São Paulo prendeu 77 mil pessoas, apreendeu 144 toneladas de drogas e 4.500 armas de fogo, sendo a grande maioria em abordagens desse tipo.
Decisões da Justiça como essas inibem o policial de fazer abordagens e essa inibição não se restringe apenas ao tráfico de drogas, mas a diversos outros crimes. Imagine uma pessoa sendo vítima dos milhares de sequestros que ocorrem no país, naquele momento de pavor, rezando para que uma viatura pare o veículo em que está sendo levada, mas os policiais, inibidos por essas decisões, sabendo que o entendimento é de que suas percepções, tirocínio e o que ele enxerga como atitude suspeita não valem mais nada, e pode até ensejar uma punição. Infelizmente, essa vítima será conduzida para o cativeiro com a maior tranquilidade por seus sequestradores.
É fato que boa parte do Sistema Judiciário virou um entrave para a segurança pública e os reflexos disso serão avassaladores. Nesse sentido, não adianta nada mudar a legislação com leis mais duras. Há inúmeros exemplos de que mesmo após o esforço para a criação de determinadas leis, na prática, quando chega a julgamento, o que vale é o entendimento do juiz – como os do STF e STJ que mencionamos acima. Ficaremos a mercê do crime em sua faceta mais cruel e perigosa, o crime organizado. E com um agravante, o receio de até alertar para esse perigo, pois se corre o risco de desagradar alguma autoridade e ser calado. Saudade do tempo em que eu temia apenas os criminosos.
Davidson Abreu, é analista de Segurança Pública, bacharel em Ciências Sociais e Jurídicas, e autor do livro “Tolerância Zero”.