| Foto: CNJ

Numa de suas conhecidas fábulas, La Fontaine conta que os ratos decidiram, em assembleia, colocar um guizo no pescoço do gato, o eterno inimigo. Assim, quando o gato se aproximasse, eles fugiriam a tempo de não serem pegos. Um rato mais velho, calado durante todo debate do projeto, endossou o plano. Contudo, lançou a pergunta que restou famosa: “Quem vai colocar o guizo no pescoço do gato?”

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Causa-me sempre uma certa preocupação quando surgem propostas de reformas, no campo penal, que passeiam pelo rigorismo ou pelo laxismo jurídicos. Tais qualificativos acabam por influenciar não só a discussão da escolha da melhor maneira de formação da culpa criminal e de sua consequente apenação, mas, sobretudo, terminam por empobrecer qualquer debate a respeito, porque ambas mundivisões atuam, no limite, na constante mudança de leis e no acúmulo de crenças – algumas utópicas – justamente na variante dessas leis.

Um bom exemplo disso reside na crise da execução criminal. Já assistimos a propostas e concretizações de canetadas legislativas, segundo o denominador do laxismo, em prol do fim de penas detentivas que não ressocializariam, de regimes de penas mais brandos que evitassem um suposto efeito criminógeno do ambiente carcerário, de teses economicistas ou abolicionistas que extinguissem o “estado de coisas inconstitucional” do sistema penitenciário e de diversionismos sancionatórios que privilegiassem “uma busca das penas perdidas”, como diz Eugênio Zaffaroni.

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A figura do juiz de garantias, segundo a forma proposta pela teoria do garantismo penal, acaba por transformar o direito penal numa espécie de conjunto de garantias formais, ocas e assépticas

No denominador do rigorismo, já vimos excessos repressivos marcados pelos selos da espetacularição social, do populismo penal ou da miopia ideológica. Em suma, o pêndulo penal tupiniquim oscila entre a obsessão fanática pela segurança e a obsessão desmedida – no sentido grego da expressão – dos defensores inconsequentes de uma “liberdade libertina”.

Em suma, segundo um colega de toga mais velho e amigo de todas as horas, Ricardo Dip, a quem reputo generosamente o título de maior jusfilósofo vivo desse país, em ambas mundivisões “é surpreendente a dispersão fundacional – a diáspora dos fundamentos –, a falta de uma filosofia total, sistemática e fundante, a nostálgica ausência de princípios. Um variegado irracionalismo é o núcleo duro da crise do direito penal de nossos tempos”.

De uns tempos para cá, a mundivisão laxista – veiculada, em regra, pela teoria do garantismo penal – inaugurou outro campo de embate, também por meio da desgastada via da alteração legislativa, centrado na questão das técnicas a serem positivadas no ordenamento legal para “possibilitar, em favor de um investigado, a máxima efetividade de todas as normas em plena coerência com os princípios constitucionais”, nas palavras de Luigi Ferrajoli. É o caso do debate acerca do juiz de garantias.

Ao juiz de garantias, segundo o teor do novo texto legal (artigo 3.º do CPP), compete receber, deferir ou negar todas as iniciativas de investigação policial que afetem a órbita de interesses do investigado, como, por exemplo, a quebra de sigilo bancário, a colaboração premiada, a escuta telefônica, a captação ambiental e o uso de agente infiltrado. Superada a fase investigatória, o juiz de garantias deixa de atuar em favor do juiz de instrução, que presidirá o processo desde o recebimento da denúnica até a prolação da sentença.

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Já foi argumentado que a nova figura do juiz de garantias “preservaria a imparcialidade do juiz de julgamento, porque densificaria a estrututa acusatória do processo penal”. Em contrário, já foi dito “ser a imparcialidade um dado suposto na atuação de qualquer juiz, seja de garantias ou de instrução”. E eu acrescentaria ser muito importante para o juiz da instrução também presidir a formação da culpa de um investigado, porque esse contato com a vítima e as testemunhas desde o início sempre permite uma racionalidade experienciada, na qual o sujeito cognoscente conecta-se com as coisas que envolvem a formação da culpa, abre-se ao ser do mundo irrepetível de um caso concreto e a seu próprio íntimo, criando uma fecunda dialeticidade, apta a levar aquele sujeito – o juiz – ao alcance muito maior da verdade prática concreta.

A figura do juiz de garantias, segundo a forma proposta pela teoria do garantismo penal, acaba por transformar o direito penal numa espécie de conjunto de garantias formais, ocas e assépticas, fechado à totalidade do mundo e esvaziado de valoração objetiva, na medida em que vê esse mesmo direito apenas como uma espécie de magna charta dos criminosos e não amplia essa ideia para todas as pessoas, enquanto vítimas ou potenciais ofendidos.

A figura do juiz de garantias ficará tentada, a todo tempo, em cortejar o mais puro permissivismo penal

Dito de outro modo, essa figura está fadada a não tratar o direito penal, em primeiro lugar, como uma pequena magna charta dos cidadãos de bem para livrá-los da iniquidade da conduta de uns poucos e, depois, no específico favor destes útimos, para isentá-los de um retribuição social arbitrária, em prol de um processo penal equânime, de uma pena que retribua a culpa e reintegre a ordem social violada. A figura do juiz de garantias ficará tentada, a todo tempo, em cortejar o mais puro permissivismo penal.

Por isso, ao cabo, é preciso sempre questionar a epistemologia do garantismo penal, principal porta-voz do laxismo jurídico, porque a mediedade justa situa-se na concretude das circunstâncias do caso analisado e não, segundo a nova figura aqui analisada, por meio de umas técnicas legislativas postas sem qualquer conteúdo axiológico objetivo, o que, de certa forma, não deixa de ser uma revisitada versão do velho e fraudulento positivismo normativista kelseniano, de matriz filosófica neokantiana, que, por ser imanentista, ignora solenemente que o conhecimento jurídico não está fundado na consciência do sujeito, mas no próprio ser do direito.

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O direito penal não é matemática e, por isso, não existe um perfeito e acabado modelo processual “geométrico” para indicar, com exatidão, a mediedade do justo concreto criminal. Há sindérese, princípios, silogismo prático-prudencial, leis e, ao mesmo tempo, existem também singularidades fáticas, circunstâncias e exceções que, por envolverem uma tarefa de manejo típica do juiz, permitem concluir que a mediedade no campo penal só pode ser encontrada judiciariamente e não por meio de “técnicas de máxima efetividade normativa”. Em outras palavras, a sobredeterminação da norma jurídica é inevitavelmente judiciária.

Por isso, se a norma penal é condição necessária para o oficio judicial, a fim de se evitar o “poder ventríloquo” dos juízes, por outro lado, ela não é a condição suficiente para o trabalho de determinação da mediedade penal, porque ao magistrado compete a importante função de mitigar as deficiências e moderar os rigores da normativa penal, cuja inevitabilidade jamais pode ser barrada pela epistemologia própria do garantismo penal e que pode muito bem ser feita por um só juiz que presida todo o processo penal.

Resta, agora, saber se a maioria dos profissionais do direito continuará seduzida pelo canto da sereia desse novo personagem judicial – anunciado como a panaceia contra o excesso de persecução estatal –, e quem irá colocar o guizo no pescoço do gato – que sustenta esse mesmo personagem – do garantismo penal. Porque já fomos suficientemente surpreendidos por um de seus principais efeitos, já notado pelo senso comum social: um modus operandi da realidade penal pautado pela perspectiva de pouca liberdade para o bem e para as pessoas e de muita liberdade para o mal e para os delinquentes.

André Gonçalves Fernandes, post-Ph.D., é juiz de Execução Criminal, professor de Filosofia e Metodologia do Direito do CEU Law School e pesquisador da Unicamp.