| Foto: Arianna Vairo /New York Times

Pode parecer mesquinho da minha parte, mas já faz um tempo que venho reclamando dos cabeças brancas de roupa preta – aqueles fanáticos pela boa forma de 60 e 70 e poucos anos que se gabam de pedalar sei lá eu quantos quilômetros em suas bicicletas especializadas e caríssimas. Por trás do meu azedume, é claro, há um julgamento moral – o de que esses extremistas físicos bem acima da meia-idade são, obviamente, um caso típico de excesso de amor-próprio dos dias modernos. Meu veredito tem um fundo de verdade, mas, honestamente, não ficaria tão incomodado com esses superciclistas se não fosse o fato de ter uma inveja louca desse pessoal da minha idade, até mais velho, que ainda consegue ter a empolgação de forçar o corpo até o limite. Já tive tantas lesões que não posso mais fazer o mesmo, e as horas que eu passava suando costumavam ser essenciais para manter minha sanidade.

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Algumas décadas antes de Freud, Nietzsche dizia que aqueles que buscam se conhecer têm que ir mais fundo no labirinto interior e “caçar” os instintos e paixões que geram nossas teorias mesquinhas e julgamentos morais. Nesses meandros, ele detectou a marca da inveja por toda parte, comentando: “A inveja e o ciúmes são as partes íntimas da alma humana.”

Um terapeuta com mais de trinta anos de experiência outro dia me contou que, de todos os temas que seus clientes acham difícil abordar – incluindo sexo –, nenhum é mais complicado que o da inveja. Aristóteles a descreveu não como um desejo benigno em relação a algo que o outro possui, mas “como a dor causada pela sorte da outra pessoa”. Não é à toa que esse mal-estar geralmente dá espaço ao sentimento de maldade. Basta ver que, ao longo de toda a história e em todas as culturas, qualquer um que se via próspero temia e se protegia contra o “olho gordo”. É claro que hoje em dia já quase não se fala dele, pelo menos não no Ocidente, o que não significa que não tenhamos menor propensão à inveja que nossos ancestrais.

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Ao longo de toda a história e em todas as culturas, qualquer um que se via próspero temia e se protegia contra o “olho gordo”

Em seu ensaio “Da Inveja”, o filósofo Francis Bacon escreveu: “De todos os sentimentos, é o mais importuno e contínuo, pois ao contrário dos outros, não se manifesta em uma única ocasião, mas no aqui e agora – no que, portanto, podemos concluir que Invidia festos dies non agit, ou seja, A inveja não tira férias.”

Uma das razões disso é nunca resistirmos ao impulso de nos compararmos ao outro. Tenho alunos felicíssimos por serem admitidos em determinada universidade que, depois de alguns dias, chegam timidamente para perguntar se por acaso sei quantos candidatos foram rejeitados – ou seja, quanto maior o número de barrados, mais feliz ele se permite ficar.

As redes sociais geraram uma nova dimensão a essa compulsão de se comparar e superar o outro.

Talvez seja uma forma sutil do que Nietzsche descreve como “vontade de poder”, mas muitos anunciantes prometem que a compra de seus produtos não só elevará seu status, como também fará seu vizinho se retorcer ao vê-lo manobrando aquele esportivo novinho na garagem.

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Será que há algo que se aprenda com a inveja? Se Sócrates estava certo e a vida sem sentido não merece ser vivida, então certamente devemos analisar nossos sentimentos para descobrir o que realmente nos importa, e não o que gostaríamos de achar que nos é importante – e que outro instrumento melhor para essa autoanálise do que a inveja, sentimento tão honesto quanto um soco?

Por exemplo, sempre encontro um motivo para ficar bravo com as pessoas de quem tenho inveja – mas se consigo identificar o lagarto da invídia rastejando em minha psique, quase sempre consigo contornar o sentimento da ira. Essa mesma consciência pode ajudar a mitigar julgamentos morais: reconhecendo a inveja quando um amigo de 60 e poucos anos anunciou que recentemente completara uma maratona, consegui me conter e não dar corda ao pensamento indignado: “Em vez de correr tantos quilômetros por dia, por que não vai cuidar de crianças deficientes?”.

Kierkegaard, que uma vez comentou que poderia dar um curso sobre a inveja, comentou a seguinte história da Grécia antiga: “O homem que disse a Aristides que estava votando para bani-lo, porque estava cansado de ouvi-lo ser chamado de ‘o único homem justo’, na verdade não negava sua excelência, mas confessou algo sobre si mesmo – que sua relação com a superioridade não era a de uma paixão feliz de admiração, mas sim de paixão infeliz de inveja.” E conclui com o mais importante: “Mas ele não minimizou a primazia do outro.”

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“A inveja é a admiração secreta”, conclui. Como tal, se formos honestos conosco mesmos, ela pode nos ajudar a identificar nossa visão de perfeição e, se for necessário, transformá-la. O dinamarquês lamentou o fato de que, ao contrário de Aristides, a tendência de seus conterrâneos de Copenhague era negar esse sentimento feio e desacreditar a pessoa que expressa demonstrações de ressentimento e má vontade, como aqueles malditos coroas passando pela minha casa de bicicleta. Ah, como eu gostaria de acompanhá-los!

Como tal, se formos honestos conosco mesmos, a inveja pode nos ajudar a identificar nossa visão de perfeição

Camus escreveu: “Grandes sentimentos carregam consigo seu universo próprio, esplêndido ou abjeto. Com sua paixão, iluminam um mundo exclusivo. […] Há um universo de ciúmes, de ambição, de egoísmo, ou generosidade. Um universo, ou, em outras palavras, uma metafísica e uma postura mental”. Não vemos o mundo como uma representação bidimensional; nossas emoções dão valor e cor ao universo que percebemos. Por mais desagradável que seja, é bom saber quando estamos projetando sentimentos de inveja – ou seja, quando o resto do mundo parece estar nos fazendo sentir menores e mais desafortunados.

Atualmente tem muita gente que acha que essa conscientização é relativamente inútil, que o autoconhecimento não vai alterar os sentimentos que sabemos existir. Talvez esses céticos saibam algo de que não tenho conhecimento, mas a experiência me ensinou que, embora não possa escolher o que sentir, tenho o poder de alterar a forma como entendo isso e, consequentemente, mudar e transformar essas sensibilidades, inclusive a inveja.

Outro dia assisti a um documentário que falava sobre pessoas que investem grande parte do tempo/vida para impedir que jovens se rendam à criminalidade. Deitado no sofá, eu poderia ter dado uma de cínico e pensar: “O sistema está perdido”, o que seria uma manifestação da minha inveja pela dedicação dessas almas generosas e bondosas. Assim, comecei a me torturar com a ideia de que, em vez de escrever sobre a inveja, deveria fazer algo a respeito e passar mais tempo ajudando essa garotada prestes a entrar para o mundo do crime. E talvez o faça.

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Gordon Marino é professor de Filosofia do St. Olaf College e autor, mais recentemente, de “The Existentialist’s Survival Guide: How to Live Authentically in an Inauthentic Age”.
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