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Monumento de Karl Marx no espaço público da cidade de Chemnitz, Alemanha.
Monumento de Karl Marx no espaço público da cidade de Chemnitz, Alemanha.| Foto: Tupungato/Bigstock

Durante muito tempo, historiadores de laboratório – alguns ainda existem – pensaram a formação da história das sociedades em termos de classes e/ou estruturas. Para os pesquisadores econométricos ou classicistas, a história humana é resultado de relações de grupos com outros grupos, de corporações com corporações, de classes com classes. Como disse o pai do materialismo histórico-dialético, Karl Marx, “a história da sociedade até os nossos dias é a história da luta de classes”.

Dessa perspectiva, a história deve ser entendida como uma equação, um cálculo matemático. Porém, o que temos, em vez de números, são indivíduos agrupados que simbolizam determinada força que, somada a outra força (outros indivíduos agrupados), resulta em “X”, um evento histórico. A matematização da sociedade promoveu o eclipse do indivíduo, reduziu a experiência social, plural e multiforme às formas rígidas da matemática. O indivíduo nessas teorias desaparece e dá lugar a termos gerais que expressam movimentações gerais que supostamente fazem a história. A “locomotiva da história” parece ser movida por forças impessoais de acordo com essas teorias, mas, de fato, ela não é e nunca foi assim.

A locomotiva da história, na verdade, é movida por indivíduos, pequenos organismos vivos se relacionando de forma imprevisível, alternada e distinta no tempo e no espaço. Apesar da ineficiência das teorias estruturantes, o abandono delas na ciência da História ainda é muito lento. Isso tem três motivos. Primeiro, as teorias estruturantes promovem uma facilidade para compreender e apreender intelectualmente a conflitante e frenética atividade histórica. Segundo, ela serve a um propósito político que está radicalmente ligado à sobrevivência dessas teorias. Por exemplo, não pode haver políticas socialistas, fascistas e comunistas sem esses suportes teóricos que justificam certas ideologias. Por fim, os autores que se opõem a essas teorias sacralizadas na academia são quase sempre ignorados para preservar a honra dos marxistas.

Um autor muito ignorado na historiografia brasileira é Roger Chartier, historiador francês vinculado à quarta geração da historiografia da Escola dos Annales. Ele nasceu em 1945 e ainda está em atividade. Em seu livro À beira da falésia – a história entre certezas e inquietude, no capítulo sobre “A História entre narrativa e conhecimento”, Chartier inicia seu texto citando uma famosa e aterradora constatação a respeito da obsolescência das antigas formas de se pensar a formação da história. Segundo Chartier,“o tempo das incertezas” chegou, em que os paradigmas dominantes para se entender a história, como os “marxismos ou (...) estruturalismos”, perderam definitivamente suas “capacidades estruturantes”.

Como isso pôde acontecer? Bom, a resposta, ironicamente, também é matemática. Assim como os antigos físicos e matemáticos regulavam suas suposições teóricas com a experiência prática, a experiência da vida real na formação da história destruiu os créditos de que os marxismos e estruturalismos gozavam na academia e na sociedade. Chartier defende em seu livro que foram as recentes mudanças no mundo que desembocaram no apagamento dos antigos modelos de compreensão e na quebra dos velhos princípios marxistas de inteligibilidade histórica.

Para Chartier, as teorias que agora estão abaladas podem ser definidas como aquelas que tentaram lidar com a responsabilidade de “identificar as estruturas e as relações que, independentemente das percepções e das intenções dos indivíduos, comandavam os mecanismos econômicos, organizavam as relações sociais, engendram as formas de discurso”. O marxismo ortodoxo e sua ideia materialista de classes e de consciências rígidas, e os estruturalistas e suas percepções de um mundo com divisões estanques, buscavam pôr em prática tentativas de estabelecer aquilo que Carlo Ginzburg chamou de método “galileano” – isto é, supor a história em linguagem matemática a fim de estabelecer suas leis de funcionamento. Essas teorias foram as responsáveis pelo eclipse do indivíduo na História.

Em Teoria e História, o economista liberal Ludwig von Mises defendeu que a tentativa de entender a história humana, as relações dos indivíduos numa sociedade com métodos matemáticos e econométricos, é algo simplesmente impossível, pois os métodos “em xeque” procuram “agrupar os homens em classes cujos membros reajam da mesma maneira”. É como as leis da física que determinam que uma pedra terá sempre a mesma reação ao cair na água; porém, teorias queriam calcular, agrupar e determinar as consciências, intenções e ações de indivíduos, de seres humanos, de acordo com uma “espécie” – ou melhor, uma classe. O rico será sempre um rico explorador e um pobre será sempre um pobre oprimido.

Apesar de ter uma boa intenção de dar à História um caráter mais científico, essas teorias falharam miseravelmente e serviram aos piores projetos políticos já existentes na terra. Economias planificadas que desembocaram em desigualdades e fome, políticas de eugenia, divisões de classe, segregações de raça, preconceitos financeiros, corrupções administrativas em governos e ressentimento populacional. Porém, há esperança. Aos poucos, bons historiadores estão descartando teorias obsoletas, dando lugar, conforme Chartier nos conta, à restauração do “papel dos indivíduos na construção dos laços sociais.”

As novas – e nem tão novas assim – teorias da história trabalham com um individualismo metodológico que proporciona ao pesquisador uma transição “das estruturas às redes, dos sistemas de posições às situações vividas, das normas coletivas às estratégias singulares”. A micro-história é uma delas.

Segundo Chartier, a “micro-história” – o conceito que melhor define essa transição – ofereceu a tradução mais clara e viva da transformação destes procedimentos históricos. A micro-história pretendia reconstruir, a partir de uma situação particular, “a maneira como os indivíduos produzem o mundo social, por meio de suas alianças e confrontos, através das dependências que os ligam ou dos conflitos que os opõem”. Chartier define que a micro-história delineia a incrível mudança do eixo teórico de uma estruturalização inflexível para uma análise “centrada nas variações e discordâncias existentes”.

Assim, estamos mais próximos da realidade, de que são os pequenos indivíduos, com suas consciências variantes, em seus alternados interesses, em suas variadas formas de agir no mundo, em seus vários espaços de atuação e transformação que fazem a história. A história da sociedade até os nossos dias não é a história da luta de classes, mas é a história... das estratégias singulares.

Fernando Razente é historiador com atuação em rádio, assessoria e mídia.

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