A decisão do Supremo Tribunal Federal ao instaurar processo penal destinado a apurar responsabilidades no caso apelidado de mensalão confirmou a existência da compra de apoio político mediante o pagamento regular em dinheiro que era retirado dos cofres públicos. Haverá extenso caminho até a definição, réu a réu, da responsabilidade pela autoria dos crimes. Enquanto aguarda o desfecho judicial, a sociedade deve conversar sobre a corrupção das pessoas que exercem funções públicas, para encontrar as causas dessa doença que incomoda todos os brasileiros.
No governo de Fernando Henrique Cardoso, ele o diz (Gazeta do Povo, 2/9/07, caderno Brasil, pág. 3), havia obtenção de apoios políticos sem a compra a dinheiro de deputados e senadores. Usava-se a "cessão do controle de partes da máquina pública a interesses partidários, o que em si pode não ser um erro, se for para a implementação de políticas com as quais o governo ou os partidos aliados estejam de fato comprometidos". Visto de outro modo, um "mensalão" tão elegante quanto o ex-presidente, mas nem por isso menos reprovável, pois transforma os cargos públicos em objeto de troca, destinando-os à saciedade honesta ou desonesta daqueles que vivem da política e não para a política.
O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso também afirma que há relação entre o sistema político-eleitoral e a corrupção e que "se é certo que há algum tempo era perceptível o embaraço que nosso sistema político-eleitoral causa ao bom êxito da administração e às práticas políticas do país, isso se tornou patente no relacionamento entre o governo atual e o Congresso." Como solução, propõe o voto distrital misto, o que é pequeno diante do gigantismo do problema.
A expectativa de punição e a indignação do povo são insuficientes para impedir que um novo mensalão ocorra. Essa triste afirmação não é pessimismo existencial; ela está fundada na percepção de defeito estrutural da Constituição Federal que impede a existência de governos saudáveis e comuns, sem pose de governo que marca a história e muda toda a face do país. Apontar a arquitetura constitucional como causa de mazela política é heresia suficiente para que os fiéis do constitucionalismo se apressem a defender a santidade da Constituição cidadã. Alguns se revelam verdadeiros Torquemadas nessa defesa, fechando todas as oportunidades para debate científico.
Não é o povo que deve acreditar na Constituição. Ela é que deve ser fruto das crenças do povo. Ela não é produto da revelação da vontade divina feita por alguns anjos (deputados) e arcanjos (juízes) que a interpretam: a sua criação e aplicação ocorrem como resultado de decisão de pessoas comuns que agem motivadas por vícios e virtudes, tal como fizeram os deputados federais e senadores eleitos em 1986 e que escreveram o texto da Constituição.
O defeito central da Constituição de 1988 é a extensão: ela versa sobre a estrutura do Estado e sobre banalidades. Uma constituição com idéias civilizatórias postas no mesmo nível de temas absolutamente conjunturais não tem o poder de guiar razoavelmente uma sociedade plural. A energia das grandes idéias expressas na Constituição é neutralizada pela inércia das insignificâncias alçadas ao status de magnas. A senilidade natural dos temas momentâneos, fugazes, aos quais se atribuiu rigidez constitucional, fez a Constituição morrer sem ter vivido. As emendas em escala industrial causam a impressão de constituinte perpétua.
O mal profundo causado pela excessiva amplitude da Constituição de 1988 é a impossibilidade de governar sem maioria de 3/5 no Congresso. Em ambiente democrático não existe força política tão hegemônica. Todos os governos que se obrigam a tal maioria são gelatinosos, melequentos, desprovidos de alma. Não há programa partidário que permaneça incólume a uma base aliada que alcança 80% do Parlamento. Na geléia geral, afunda-se no fisiologismo, sem que se atenda ao interesse público.
É prudente arrumar a arquitetura das instituições para que os governos possam funcionar com maioria simples, implementando o seu programa sem a necessidade de mudar a Constituição mediante a compra a dinheiro, ou cargos, do apoio de uma grande base aliada, quase extinguindo o espaço para oposição. O governo torna-se total, sem contraditório, nocivo à diversidade de idéias. A democracia precisa de muita oposição.
A reforma pode ser feita por uma Assembléia Constituinte cujos membros sejam eleitos com a tarefa exclusiva da reforma política e não possam se candidatar a nenhum cargo eletivo e nem ocupar cargo comissionado durante uma década.
Friedmann Wendpap é juiz federal e professor de Direito da UTP.