O cheiro de sangue está no ar. Não, não falo de crimes reais, desses que deixam cadáveres no chão e manchetes nos jornais. Falo da nova indústria do linchamento, do mercado de execração pública, onde a verdade é um detalhe incômodo e descartável. Os justiceiros midiáticos estão sempre a postos, prontos para condenar o infeliz que caiu na rede.
Ninguém se salva. Nem santos, nem pecadores. O tribunal está sempre aberto, os promotores não dormem, e os juízes já têm a sentença pronta antes mesmo de ouvir o caso. O réu da vez pode ser qualquer um: um desavisado que escorregou nas palavras, um incauto que ousou discordar da patrulha ideológica do dia ou, pior ainda, alguém que simplesmente não rezou pela cartilha certa.
Enquanto o jornalismo sério luta para se manter relevante, o sensacionalismo ganha espaço. O que vale é engajamento, cliques, histeria coletiva. Fatos tornam-se detalhes menores, inconvenientes
Alguns veículos de comunicação, ávidos por audiência, não perdem tempo. Como dizia Nelson Rodrigues, "a imprensa é a arapuca armada para pegar otários". Mas os otários, hoje, não são apenas os que se deixam apanhar – são também os que acreditam nessa encenação travestida de justiça. Enquanto o jornalismo sério luta para se manter relevante, o sensacionalismo ganha espaço. O que vale é engajamento, cliques, histeria coletiva. Fatos tornam-se detalhes menores, inconvenientes. Mas um escândalo? Um personagem público queimado em praça digital? Ah, isso vende como nunca.
O problema não está só no circo montado. É a completa falta de compromisso com a verdade. Não a verdade filosófica, inalcançável e subjetiva, mas a básica, aquela que diferencia fato de delírio, investigação de fofoca, responsabilidade de malandragem. Só que ninguém mais tem tempo para ela. É mais fácil embarcar na versão mastigada, carregada de indignação seletiva e servida com pitadas de ódio gratuito.
E quem são os fornecedores dessa mercadoria podre? Os moralistas de aluguel, os militantes de ocasião que vendem uma imagem de pureza imaculada enquanto escondem seus próprios pecados. São os que denunciam a imoralidade alheia enquanto fazem acordos nebulosos nos bastidores. Os que pregam ética e transparência, mas que, se investigados a fundo, não passariam no primeiro teste de integridade.
O pior é que o público aplaude. Porque a hipocrisia do justiceiro é invisível para quem precisa desesperadamente de um vilão. Pouco importa se a história não se sustenta, se os fatos são frágeis ou se a versão tem mais buracos que uma peneira. O que importa é alimentar a ilusão de que há um lado puro e outro podre, e que os autoproclamados guardiões da moralidade estão, claro, do lado certo da história.
Mas eis a ironia: todo justiceiro um dia vira réu. Ninguém escapa para sempre da máquina de moer reputações que ajudou a girar. Um dia, um escândalo antigo ressurge, uma contradição vem à tona, um desafeto decide acertar as contas. E então, o que antes era carrasco vira condenado. A roda gira, a turba se reúne novamente, e o linchamento segue.
E, no fim, quem se importa com a verdade? Ela dá trabalho, atrapalha a narrativa, exige reflexão. Melhor manter o show, alimentar a plateia, jogar mais um na fogueira e seguir fingindo que tudo isso tem algo a ver com justiça. E que venha o próximo culpado da semana.
João Zisman é economista, jornalista e secretário de Comunicação e Relações Institucionais de Foz do Iguaçu (PR).