Muito embora a condução da crise relacionada ao enfrentamento do Covid-19 esteja sendo bastante elogiada por alguns setores da sociedade, o Ministério da Saúde ainda persiste na manutenção de políticas públicas incompatíveis com a plataforma pró-vida que elegeu o atual governo. De fato, conforme pesquisa Datafolha divulgada em 25 de outubro de 2018, para se alcançar os 57,8 milhões de votos que o elegeram no segundo turno, o presidente Jair Bolsonaro contou com forte apoio dos segmentos católico, evangélico e espírita, grupos sociais cuja identidade comum é a defesa da vida desde a concepção até a morte natural da pessoa humana.
No entanto, é justamente nesta seara que se nota uma negligência por parte do Ministério da Saúde, que, na prática, termina por “legalizar”, em qualquer circunstância, a prática do aborto em nosso país.
Regulamentações administrativas editadas ainda na gestão do governo do Partido dos Trabalhadores estabelecem procedimentos de justificação e autorização para a interrupção da gravidez que atualmente estão em total dissonância com a lei penal em vigor. A Norma Técnica do Ministério da Saúde “Prevenção e tratamento dos agravos resultantes da violência sexual contra mulheres e adolescentes” e a Portaria 1.508, de 1.º de setembro de 2005, que estabelece os “Procedimentos de Justificação e Autorização da Interrupção da Gravidez nos casos previstos no âmbito do Sistema Único de Saúde”, determinam que não é necessária a apresentação de boletim de ocorrência nos casos de violência sexual, devendo a gestante apenas preencher alguns relatórios identificando as circunstâncias em que ocorreu o crime e o seu consentimento com a realização do aborto. Estes documentos, conforme o artigo 2.º da Portaria 1.508, deverão ser arquivados anexos ao prontuário médico e será garantida sua confidencialidade.
Este procedimento, infelizmente, tem propiciado a prática de abortos que não estariam realmente enquadrados nos casos em que o Código Penal, em seu artigo 128, II, não prevê a punição para o crime de aborto. Tal prática, inclusive, vem sendo propagada por grupos abortistas que divulgam essa possibilidade em sites e cartazes espalhados em nossas cidades.
Entretanto, estas normas editadas pelo Ministério da Saúde são hoje ilegais. Ao tempo em que foram editadas, nossa legislação previa que a ação penal decorrente destes crimes contra a liberdade sexual (estupro) deveria ser precedida de queixa ou representação, pois entendia-se que a vítima é quem deveria ponderar se queria ou não se expor a um processo judicial. Após setembro de 2018, no entanto, esta situação mudou, pois entrou em vigor a Lei 13.718, que tornou pública incondicionada a natureza da ação penal dos crimes contra a liberdade sexual e dos crimes sexuais contra vulnerável. Assim, é obrigatória a persecução penal destes crimes, independentemente da vontade da vítima, e a Lei de Contravenções Penais, em seu artigo 66, inciso II, obriga os profissionais de saúde a comunicarem qualquer crime de ação pública de que tiverem conhecimento em razão de suas funções.
Desse modo, as normas contidas na portaria e referidas na norma técnica acerca da desnecessidade de apresentação de boletim de ocorrência e garantia de sigilo do médico de não denunciar o delito contra a liberdade sexual devem ser revogadas por não encontrarem mais amparo em nosso sistema legislativo. O profissional de saúde, agora, tem o dever de comunicar a existência destes crimes às autoridades públicas. A ilegalidade destas normas do Ministério da Saúde, inclusive, já foi objeto de provocação por parte de um ofício da Defensoria Pública da União de Minas Gerais expedido em fevereiro deste ano, o qual ainda está pendente de resposta.
Espera-se que tal medida resulte em um maior controle dos abortos resultantes de violência sexual, reprimindo eventuais fraudes e conferindo uma maior proteção aos nossos nascituros.
Danilo de Almeida Martins é defensor público federal lotado na Defensoria Pública da União de Belo Horizonte (MG).
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