O crescimento do MMA se deve à nossa própria reação hipnótica diante da violência. A sacada de eventos como o UFC está na capacidade de transformar esse fascínio em produto

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O país do futebol parece estar se transformando também no país das lutas. A popularização dos torneios de MMA (sigla, em inglês, para Artes Marciais Mistas) tem suscitado discussões sobre as causas e consequenciais daquilo que alguns chamam de "espetacularização da violência". Por que milhões de pessoas se deslumbram com um esporte que se caracteriza por exibir doses cavalares daquilo que, em nossas vidas cotidianas, mais evitamos? Em que medida esse deslumbramento pode ser encarado como uma "doença social", um indício de que há um estado "selvagem" no homem que ainda precisa ser civilizado?

Talvez a chave para a compreensão desse fenômeno esteja no fato de a violência ser capaz de suscitar horror, repulsa, fascínio e deleite, mas nunca indiferença. Além de todas as condições que ora concorrem para a popularização do esporte – grandes ídolos, patrocínios milionários e a exibição eventual na tevê –, o crescimento do MMA se deve, em especial, à nossa própria reação hipnótica diante da violência. A sacada de eventos como o Ultimate Fighting Championship (UFC) está na capacidade de transformar esse fascínio em produto.

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Os mais críticos dizem que o crescimento do esporte indica um retorno à barbárie, em que a violência é a única linguagem compreensível; seria um desnude daquilo que há de mais arcaico no homem: a elevação gratuita da violência. Não se pode negar que há algo de grotesco nesses eventos; mas merece reflexão a afirmação de que eles denotam o regresso a um estado primitivo ou uma negação da civilização.

Ao cunhar a expressão "Gladiadores do Terceiro Milênio" durante a transmissão de um desses espetáculos, o locutor Galvão Bueno, involuntariamente, trouxe subsídios para o debate. As comparações com os antigos guerreiros romanos – feitas, em geral, como forma de criticar a selvageria e "atraso" dos competidores – não levam em consideração a diferença fundamental entre os protagonistas do passado e os do presente: enquanto os gladiadores eram, em sua maioria, escravos aprisionados durante as campanhas romanas, os lutadores de hoje são homens livres que escolheram a luta como profissão.

A diferença não pode ser negligenciada. Se, para os antigos, as batalhas eram um imperativo – uma vez que os lutadores não eram donos dos próprios corpos –, aqueles que hoje sangram nas arenas para ganhar dinheiro e entreter o público o fazem por livre escolha, digladiando-se com outros igualmente livres. Além disso, a transformação do "Vale-Tudo" em MMA traz outro dado para a reflexão: a violência passa a ser promovida sob a supervisão de regras previamente estabelecidas. Há limites para a atuação dos lutadores e, por mais espantoso que isso possa parecer em um cenário supostamente bárbaro como uma arena, o público consumidor repudia aqueles que eventualmente transgridam algum desses limites.

Visto sob essa ótica, ao invés de o MMA ser um retrocesso à civilização, pode-se notar aí um indício de seu triunfo: a violência continua a ser consumida, mas dentro de regras e limites; os indivíduos são livres para colocarem seus corpos à prova, mas contam com uma organização que garante a igualdade de condições (limites de peso, controle de dopagem, golpes ilegais).

Se na Roma antiga as lutas serviam à dominação política, hoje lutadores e promotores dividem os lucros do show, por meio de contratos igualmente preestabelecidos; se, no passado, a glória alcançada pelos gladiadores era insuficiente para retirar-lhes da condição de escravos, hoje glamour e dinheiro caminham juntos, fabricando ídolos multimilionários que rivalizam em atenção com astros da teledramaturgia.

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Não se pode negar que há aí um espetáculo devidamente adaptado à realidade do "terceiro milênio". Ao mesmo tempo em que se promove fruição àqueles que consideram esse tipo de violência aprazível, determina-se o espaço no qual ela deve ser concentrada e estabelece seus limites. Não causa espanto, portanto, que a cantora Sandy – aparentemente a criatura mais meiga do planeta – seja uma das assíduas consumidoras do gênero. Se, na arena moderna, o mais forte continua a vencer, a regra é ainda mais forte que o forte. E isso conforta, permitindo um consumo sem grandes contraindicações.

O MMA, de fato, mostra um pouco do que somos, trazendo à luz este estranho fetiche pela violência. Mas, acima de tudo, a maneira como a violência é operacionalizada e consumida revela alguns dos mecanismos da civilização.

Elton Frederick, mestre em Ciência Política pela PUC-SP, é especialista em Política e Relações Internacionais pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo. E-mail:eltonfrederick@gmail.com