O mundo deve se preparar para enfrentar novas epidemias sazonais. Logo virão outras, algumas provavelmente desconhecidas. É o resultado da opção que o ser humano moderno fez, adotando hábitos e costumes inadequados, talvez necessários, tais como alimentares com base no consumo de frango, porcos e gado, alguns consumindo animais silvestres, amontoando-se em grandes cidades, convivendo em ônibus, trens e locais superlotados, entre outros costumes que facilitam a contaminação e a propagação de inúmeros microrganismos tais como vírus, bactérias e fungos.
Assim, estamos continuamente expostos a doenças vetoriais, zoonoses, endêmicas e/ou sazonais. Já enfrentei várias situações como a que estamos vivendo agora. Trabalhei, como interno ou médico residente, na linha de frente com pacientes com meningite, na década de 1970 – durante três anos, a epidemia matou milhares de crianças; com HIV, tentando controlar a doença através do sangue – e assisti, infelizmente, à morte de quase metade da população dos hemofílicos por conta da transmissão do vírus durante as transfusões de hemoderivados; além dos enfrentamentos da cólera, dengue, zika, chikungunya e febre amarela. Foram experiências dramáticas, mas que estão ajudando a enfrentar os desafios de agora com o Sars-CoV-2.
Temos de aprender a conviver com tudo isso. E vamos deixar bem claro: a vacina, seja ela qual for, não vai acabar definitivamente com a doença. O que a imunização contra o coronavírus vai fazer é o que outras vacinas já fazem com a gripe, com o sarampo e com todas as doenças imunopreveníveis, ou seja, reduzir o número de pessoas infectadas, os quadros graves e, certamente o mais importante, prevenir a morte. A vacina é fundamental para evitar que a doença se complique e tenha má evolução. Tenho defendido a vacinação com muita insistência. Todas as vacinas são boas e seguras, não há nenhuma de primeira ou de segunda classe. Mesmo após a segunda dose, no entanto, a população precisa continuar usando máscara, mantendo o distanciamento social e a higiene das mãos com água e sabão ou com álcool em gel, para evitar a propagação.
Lamentavelmente, a Organização Mundial da Saúde (OMS) está falhando em relação à vacinação. A OMS não poderia deixar essa questão tão determinante cair predominantemente no ambiente dos negócios. Não poderia. Não se deveria admitir que um país rico comprasse mais vacinas do que precisa para sua população, enquanto dezenas de outras nações mais pobres ficam sem o imunizante. Se um único país ficar sem a vacina, todo o esforço mundial fica comprometido porque uma nova onda, provavelmente com novas mutações, pode voltar e contaminar o planeta. Corremos o risco de pagar um alto preço por isso. Está faltando um trabalho de organização e harmonização dos recursos por parte de organismos multilaterais para garantir o acesso universal à vacina. A vacina é um bem público.
No caso do Brasil, ainda há alguns fatores negativos que prejudicam a população em geral: a falta de um eficiente comando central para a compra e distribuição da vacina, a politização em torno do assunto e as nefastas campanhas de negacionismo, estas também presentes em países desenvolvidos.
O mundo foi incauto nesse processo. Por duas vezes o coronavírus já tinha dado sinais de que causaria uma pandemia. No início da década passada, com a denominação de Sars-CoV-1, começou em Hong Kong e foi para a Europa e Canadá. Felizmente, foi contido. Depois, com o nome de Mers, apareceu no Oriente Médio. Nenhum destes dois episódios foi capaz de causar uma pandemia, mas eu diria que isso não aconteceu por um triz. Isso porque houve um bloqueio, um alerta muito vigoroso. E isso não aconteceu com a Covid-19.
Houve um retardo do alerta tanto pelas autoridades chinesas como pela OMS. Se a pandemia tivesse sido declarada precocemente, pelo menos um mês antes, teríamos fechado mais fronteiras e diminuído o fluxo de pessoas. No caso brasileiro, não teríamos autorizado o carnaval. É muito curioso que a primeira notificação do vírus no Brasil tenha sido anunciada na Quarta-Feira de Cinzas de 2020.
Um problema adicional que vai aparecer nos próximos anos é consequência da interrupção dos diagnósticos, importantes para salvar vidas. Milhares de exames deixaram de ser feitos, como Papanicolau, mamografia, colonoscopia, tomografia para câncer de pulmão e PSA para câncer de próstata, entre outros.
No caso das doenças crônicas, o atraso na ida ao médico com medo da pandemia também vai gerar agravamentos – arrisco dizer que isto já esteja ocorrendo, mas ainda não contabilizamos. E não sabemos durante quanto tempo conviveremos com “dois sistemas de saúde”: o específico para a Covid-19 e o que cuida dos demais doentes. Teremos um ano bastante difícil e desafiador. Espero que tenhamos lucidez e compromisso público para superá-lo da melhor maneira possível.
Carmino Antonio de Souza é professor titular da Unicamp, diretor da Associação Brasileira de Hematologia, Hemoterapia e Terapia Celular (ABHH) e conselheiro da Fapesp, ex-secretário de Estado de Saúde de São Paulo e ex-secretário da Saúde de Campinas.
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