Recentemente, a Câmara dos Deputados aprovou o Projeto de Lei Complementar (PLC) nº 233/2023 que cria o “novo DPVAT”, chamado de Seguro Obrigatório para Proteção de Vítimas de Acidentes de Trânsito – Seguro SPVAT. Acerca desse tema, muito se tem falado sobre a “recriação” do DPVAT; porém, não é algo tão simples, e alguns detalhes merecem nossa atenção.
O seguro DPVAT, enquanto contratação obrigatória, foi instituído no período do Regime Militar, pelo Decreto-Lei nº 73/1966; na noção inicial, não como qualquer espécie de imposto ou taxa, mas como um seguro obrigatório (obrigação de fazer). Ressalto que são coisas diferentes, e essa diferença se mostrará bastante interessante. Acerca disso, brilhantemente explica Heleno Taveira Torres: “A obrigatoriedade não se refere ao pagamento do prêmio, mas quanto ao ato de contratação e manutenção do veículo segurado pelo DPVAT, conforme o artigo 21, do Decreto-lei 73/66. Essa é a sua diferenciação como seguro legalmente obrigatório.”
Portanto, o que é obrigatório para o proprietário é a contratação do seguro, não o pagamento do chamado "prêmio" (um nome bem peculiar, diga-se de passagem), que era financiado pelos proprietários e, hipoteticamente, poderia ser feito, até mesmo, pelo governo (o que nunca aconteceu, na prática). Por essa razão, não se enquadra em nenhuma classificação tributária (impostos, taxas, contribuições etc).
Em 2019, o Governo Bolsonaro editou a Medida Provisória (MP) nº 904, extinguindo o Seguro DPVAT e garantindo a cobertura das indenizações dos sinistros ocorridos até 31 de dezembro de 2019, quando as cortinas do seguro seriam fechadas. Nas razões da Medida Provisória – justificando a tentativa de extinção – apontaram-se vários problemas e fragilidades na governança pública dos valores arrecadados.
Ainda em 2019, porém, o Supremo Tribunal Federal (STF), na Medida Cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 6.262, suspendeu a eficácia da MP decidindo que tal revogação somente poderia ser feita por lei complementar (uma forma de lei cuja aprovação é mais difícil que uma lei ordinária), com base no art. 192 da Constituição Federal de 1988.
De toda sorte, não há como duvidar que o governo Bolsonaro demonstrou, claramente, o desinteresse em manter a cobrança do prêmio da forma como vinha sendo feita. Segundo artigo publicado pela Câmara dos Deputados, isso fez com que o consórcio de seguros fosse desfeito, promovendo a publicação, em 30/12/2020 da Resolução CNSP nº 400/20 que autorizou a contratação da Caixa Econômica para que assumisse a gestão e os pagamentos das indenizações a partir de 2021.
Ainda na matéria, o “prêmio”, todavia, não seria mais cobrado dos proprietários porque ainda havia um saldo remanescente, segundo cálculos do CNSP (coisa que tinha sido exposta na Medida Provisória de 2019).
Na prática, nem o DPVAT, nem o seu "prêmio" deixaram de existir, apenas foram “empurrados” até quando esse saldo fosse suficiente - tanto que o inciso I, do art. 20 do Decreto-lei 73/66 continua em pleno vigor.
Segundo noticiado em 28/01/2024 pelo InfoMoney, o valor acabou e a CEF suspendeu o pagamento do Seguro DPVAT com 9,9 mil pedidos pendentes. Isto é: o governo “deixou a bomba explodir” – técnica bastante conhecida da política brasileira.
Pois bem. Se voltássemos um pouco no tempo (antes de a bomba explodir), parece-se que caberia ao governo apostar em dois caminhos:
- Ter se planejado para esse momento a partir do anexo de riscos da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) e propor o direcionamento de valores para o fundo gerido pela Caixa e, assim, estender o pagamento, sem retomar as cobranças aos proprietários; ou
- Bancar um projeto de lei que recriasse o pagamento obrigatório do "prêmio" do seguro.
Apesar de os dois caminhos atenderem ao bem-estar das vítimas dos sinistros de trânsito, o governo Lula seguiu pelo caminho mais gravoso aos proprietários com o PLC nº 233/2023, tornando não apenas a contratação do seguro como um ato obrigatório por lei (como ainda é hoje), mas também o pagamento do "prêmio" como obrigatório – juridicamente falando.
No PLC, o "prêmio" é regulado no capítulo III e se estabelece como critério obrigatório para (1) licenciamento anual; (2) transferência de propriedade; (3) baixa de registro; (4) circulação dentro e fora de via pública. Ou seja, um texto para não dar oportunidade de uma nova "manobra" em favor dos proprietários.
Não é o foco deste artigo, mas o projeto afirma que as indenizações continuarão regidas pela Lei nº 6.184/74, o que significa que, na prática, o valor desatualizado não vai mudar.
O projeto, por outro lado, não deixa claro o valor que será cobrado dos proprietários, limitando-se a afirmar que poderá ter diferenciações quanto ao modelo do veículo e terá como base a estimativa de indenização que poderá ser paga; esse espaço me parece eivado de inconstitucionalidade dando espaço para o valor do “prêmio” estar à mercê de uma mera estimativa do governo (art. 4º).
No final do texto do projeto, no art. 17, diz-se que o “prêmio” será definido com vistas a cobrir o déficit das indenizações atrasadas – o que vai aumentar o valor ainda mais, sobretudo no início.
Isso deve levantar novas dúvidas constitucionais sobre sua natureza jurídica porque esse “prêmio” tem aparência de tributo quando obriga o seu pagamento, mas não é tributo quando seu valor pode ser definido em um ato administrativo do governo (e não em uma lei formal).
Se o PLC for aprovado, o art. 7º prevê que o fundo continuará a existir e continuará sendo gerido pela Caixa, sendo financiado através dos (a) prêmios; (b) rendimentos dos prêmios; (c) outros recursos recebidos direta ou indiretamente.
A parte do art. 7º que fala sobre “outros recursos recebidos direta ou indiretamente” abre uma nova (e bem hipotética) brecha jurídica, para o caso do governo quisesse injetar dinheiro no fundo para "diminuir" o valor do prêmio (que foi um dos dois caminhos apresentados acima); porém, com as contas públicas na trilha em que vem seguindo, não há muitas expectativas quanto a essa questão.
Em relação aos problemas de governança, o projeto atribui ao CNSP e ao SUSEP a fiscalização das operações do fundo; porém, ao meu ver, essa mudança não pode efetivamente mitigar o que vinha sendo apontado na gestão do antigo DPVAT (já que ele também era fiscalizado pelos órgãos tradicionais de controle); demandando, penso eu, uma vinculação e abertura de fiscalização por parte do Ministério Público, por ser uma entidade independente (algo como o art. 66 do Código Civil em relação às fundações) e medidas de publicidade e transparência para controle popular.
Do ponto de vista da governabilidade, é fato que a situação atual é arriscada demais para uma inércia do governo pois muitas pessoas que fazem jus à indenização se encontram prejudicadas e, para realizar o pagamento das indenizações pendentes, o projeto de lei complementar atenderia a essa situação emergencial se fosse por um período específico, porém, o Estado está colocando em pauta uma solução temporária com efeitos eternos (sempre às custas do indivíduo).
Do ponto de vista político, porém, não vejo com bons olhos que o governo obrigue o cidadão a contratar um seguro - não me surpreende que essa medida tenha nascido na época do regime militar; pior do que a ditadura são os impactos econômicos, pois o seguro tem que ser gerido por um único banco público, sem, ao menos, ofertar ao proprietário o benefício da concorrência.
Isto é, mesmo que o benefício se demonstre relevante socialmente, o que impede que esse seguro seja contratado diretamente pelo proprietário através da seguradora que lhe oferecer o preço mais interessante?
Adiel Ferreira Jr. é sócio do AFJR Advogados Associados e professor de Direito Administrativo, Política, Estado e Democracia na Uninassau Caxangá.
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