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O nó geopolítico desatado por Álvaro Vieira Pinto
| Foto: Unsplash/Kenny Eliason

Ao tratar da relação entre desenvolvimento e trabalho, Álvaro Vieira Pinto afirma: “As ponderações anteriores tiveram apenas por finalidade mostrar a necessidade de construir, como instrumento de emancipação econômica dos países subdesenvolvidos, uma filosofia cuja tese central seja esta afirmação: é o trabalho que revela a realidade, à medida que a vai modificando”, conforme se pode ler em sua obra Consciência e realidade nacional: a consciência ingênua.

Ao menos dois pontos devem chamar a atenção do leitor no excerto. Vieira Pinto insere a filosofia no centro do debate sobre o desenvolvimento. Eis o primeiro. E a associa a temas dela aparentemente distantes, como desenvolvimento e subdesenvolvimento, emancipação econômica, trabalho e mudança da realidade: eis o segundo. Contudo, não se trata de uma filosofia abstraída da realidade, mas fincada radicalmente na existência. Daí a aproximação de Vieira Pinto do existencialismo. Porém, os existencialistas e suas teses sofrem, no cadinho filosófico do autor, uma antropofagia aos moldes oswaldianos, a qual faz que os conceitos estrangeiros se transmutem. Após o “moedor conceitual” vieiriano, a filosofia existencialista se apresenta totalmente ressignificada, adaptada ao que ele chamou de “humanismo do nosso tempo”, como se vê em Ideologia e Desenvolvimento Nacional, também de autoria de Vieira Pinto.

Depois de definira tese central da filosofia que está em jogo, isto é, a do trabalho como revelador da realidade na medida em que a vai modificando, trata, em seguida, do conceito de amanualidade, retirado, com modificações, da filosofia da existência. O conceito de amanualidade decorre da ideia de algo “estar à mão”. Após fazer uso da definição abstrata e metafísica do conceito, aspecto que critica nos fenomenólogos existenciais, afirma que os objetos que estão ao redor do homem e que se revelam como coisas, são, em realidade, artefatos, objetos fabricados. Antes de se darem ao manuseio do homem, já foram produzidos por outros homens. Existem, portanto, camadas de manuseio que se sobrepõem. Ademais, o que está por trás da gradação do amanual é o conceito de trabalho.

Um clássico exemplo que Vieira Pinto usa para ilustrar a tese da sofisticação da amanualidade é o do barro que vem a ser vasilha, a qual se transforma em arte cerâmica. Mexer em uma quantia de barro é uma coisa. Segurar uma vasilha de barro para beber algo é outra. Uma terceira é tomar a vasilha nas mãos para apreciar a beleza da arte cerâmica nela inscrita. Nos três casos, o que mudou o mundo ao redor foi o trabalho, cujos graus significam a elevação da realidade objetiva da coisa a momentos superiores de manuseio.

Qual, portanto, o nó geopolítico desatado por Vieira Pinto? Trata-se de inocular no conceito de amanualidade e de trabalho os conceitos de nação e de história

Muito do que foi feito no mundo que cerca o homem é fruto desse imprimir amanualidade, em graus variados, nas coisas e nos artefatos, que por sua vez são objeto de intervenção de novos artefatos. Isso tudo custa trabalho. O conceito de amanualidade passa de conceito abstrato a conceito com pés fincados na realidade, de acordo com a reformulação nele introjetada por Vieira Pinto. Desse modo, o aspecto do trabalho e o fato de que há diferentes trabalhos a depender do período de que se trata, inclui no conceito uma nova propriedade, a história. Tem-se, desse modo, na amanualidade vieiriana, tanto a prática, o trabalho introjetado nas coisas e artefatos, o esforço humano, quanto a acumulação de trabalho ao longo do tempo e, portanto, a dinâmica da história.

Em razão desse salto conceitual, Vieira Pinto pode concluir: “Cada indivíduo encontra o mundo povoado pelos objetos que a época na qual nasceu pode produzir, na fase em que se acha o processo econômico e cultural da sua comunidade. A revelação do mundo, pelo amanual das coisas, se faz, portanto, trazendo sempre o caráter histórico da manufatura e se refere às forças de produção, às relações de produção e ao grau de avanço intelectual existentes”.

Por fim, como corolário da redefinição proposta por Vieira Pinto do conceito e de seu alargamento epistemológico, tem-se que o trabalho do homem individual em seu meio histórico, em determinada posição no espaço social, é igualmente o resultado do trabalho das gerações anteriores. É, com efeito, como se a lente dos fenomenólogos, tomada de empréstimo com a opacidade da abstração metafísica, passasse pelo polimento vieiriano e finalmente se prestasse a ajudar aquele que a usa a enxergar com exatidão a natureza das coisas. Há, por isso, no conceito de amanualidade proposto por Vieira Pinto, trabalho individual e trabalho histórico acumulado, esforço humano dos que precederam aquele homem individualmente considerado. O conceito de nação é igualmente inserido pelo autor nesta equação.

Um aspecto relativo à historicidade da natureza amanual das coisas é o que segue: “Saber que a amanualidade reveladora do mundo material é função do momento histórico leva imediatamente a compreender que está na dependência do estado de desenvolvimento de cada comunidade nacional”. Vieira Pinto então afirma que os países não se nivelam no mesmo grau de progresso. Ora, progresso, para o autor, não é uma filosofia da história a informar um rumo certo e inexorável dos povos e nações. É uma sofisticação amanual no domínio da natureza das coisas. Fica claro que a historicidade do conceito permite que se enxergue amanualidades diferentes em diferentes países (nações). A nação pode ser, em função de seu domínio sobre as coisas, desenvolvida ou subdesenvolvida.

Neste ponto da argumentação vão se tornando claros aspectos cruciais da filosofia do desenvolvimento vieiriana. É instância que amarra a filosofia da técnica à filosofia política, ao mesmo tempo em que preenche aquilo que fora apenas apontado, mas não desenvolvido, no opúsculo de 1956, Ideologia e Desenvolvimento Nacional. De fato, uma nação cuja amanualidade é pouco sofisticada possui, por parte de seus membros constituintes, uma relação com o mundo que se caracteriza pela pobreza científica e técnica.

Em síntese, a relação dos membros de uma nação subdesenvolvida com o entorno é de uma amanualidade menos sofisticada em relação à dos países desenvolvidos, industrializados. Segundo o autor, isso já era claro empiricamente, mas ninguém havia ainda compreendido a “fundamentação filosófica” que explica a raiz das situações distintas: de um lado, elaboração da amanualidade, no sentido de sofisticação e relação com um entorno já resultante de trabalho acumulado, e trabalho este de qualidade, não apenas medido pela quantidade.

De outro lado, o subdesenvolvimento como uma relação com o entorno não com produtos fabricados pela indústria, mas com entes em muitos casos sequer objeto de um primeiro grau de amanualidade, ou seja, quando o amanual é em grande monta a circunstância “puramente física”. Esta distinção entre fase primária do desenvolvimento e fase mais sofisticada traz consequências não apenas ao modo de vida dos membros da nação, mas às suas consciências acerca do entorno.

Se a consciência gerada nos indivíduos da nação subdesenvolvida é diversa em qualidade em face daquela gerada nos membros da nação desenvolvida, há uma característica que pode ser encontrada nos membros da nação subdesenvolvida que poderá ser a catapulta para a mudança de qualidade. Uma vez constatado o aspecto histórico da amanualidade e a diferença entre as nações com mais e menos sofisticação na relação com o mundo, pode surgir a procura dos meios de eliminar tal discrepância. A busca do esclarecimento da questão, sob o ponto de vista da história, levará à constatação de que o desenvolvimento “é resultado do processo de acumulação de trabalho”.

É preciso, pois, afirma Vieira Pinto, que os países subdesenvolvidos “desencadeiem no seu interior um movimento de acumulação de trabalho”. Há, entretanto, uma sutileza aqui. Não se trata de qualquer trabalho. Não se trata de acumulação quantitativa de trabalho, mas de acumulação qualitativa. Apenas esta é uma modalidade útil de acumulação de trabalho, sendo a quantitativa inócua para o desenvolvimento. É preciso sair da situação de produzir “um mais” para a de produzir “um novo”. Nesse momento, se estabelece entre as duas formas de trabalho uma “relação dialética de meio e fim”, que torna a sucessão do trabalho “não apenas cronológica, mas histórica”. Ou seja, o trabalho normal, sem inovação, passa a ser meio para o trabalho novo, o que é capaz de refundar, momento a momento, a história de dada nação.

O maior desenvolvimento de uma nação em face da outra está exatamente na capacidade de produzir, o quanto mais, trabalho novo acumulado. O salto qualitativo é, neste caso, o desenvolvimento da nação que é capaz de praticar tal tipo de trabalho. Não se trata, portanto, de simples intensificação do trabalho e aumento de produtividade, pois é precisamente o “´novo` do trabalho” que produz o desenvolvimento. O salto histórico da nação se faz apenas e tão somente com este tipo de trabalho acumulado, não com a intensificação do trabalho “velho” e sua acumulação. O autor conclui: “o que define em qualidade um modo de fazer é o que se chama a técnica. Eis-nos assim em face da questão filosófica da técnica”. Por sua vez, Vieira Pinto define a essência da técnica com as seguintes palavras: “a essência da técnica, o que lhe confere a natureza de processo, é a acumulação qualitativa do trabalho”.

Ela tem dois aspectos. De um lado, é conhecimento acumulado do melhor meio para se atingir determinado fim útil. É um fazer bem. Este o aspecto conservador da técnica. Porém, ressalta, a essência da técnica “não está no fazer bem, e sim no fazer novo [...] é por natureza invenção”. Procura realizar algo melhor por meio melhor, sendo o “meio melhor” o que “desvenda o íntimo da técnica”. O que aparece como velho é o modo estabilizado de trabalho, ou seja, o que a sociedade em determinado momento conhece de melhor para se chegar a um resultado desejado. A técnica como essência entra exatamente aí, ou seja, “vai afetar o modo de trabalho existente e sobre ele depositar o modo novo e mais perfeito”. Trata-se de acumulação de trabalho, porém não como repetição do velho, mas invenção de procedimentos originais. O processo de desenvolvimento técnico é esta sobreposição de camadas de maneiras de trabalho distintas qualitativamente.

As reflexões acima apontam para uma conclusão rica em efeitos. De fato, o autor traz como corolário dos argumentos que a técnica não pode ser concebida como algo abstrato, como a técnica em geral. Em vez disso, ele constata que, por ser processo de acumulação qualitativa de trabalho, feito em dada nação e em dado momento, nunca pode prescindir de seu aspecto histórico: “A técnica é fundamentalmente um processo histórico”. Ela demanda um contexto histórico e um dado regime de produção. Não se apresenta ou se modifica no vazio.

Por fim, uma passagem chave retirada das reflexões de Vieira Pinto sobre a técnica, realizadas na obra originalmente publicada em 1960 Consciência e realidade nacional, liga este conceito ao de desenvolvimento e, portanto, ao ensaio-projeto de 1956, Ideologia e Desenvolvimento Nacional. Se a técnica é a criação do novo a partir do antigo, a saber, desenvolvimento, conclui: “Constatamos, assim, este fato, pelo qual nos é dada, em síntese, a teoria do desenvolvimento, e que exprimimos nesta proposição: o processo histórico do desenvolvimento nacional consiste no desenvolvimento dos processos técnicos de produção”. E arremata em seguida: “Eis a razão pela qual o desenvolvimento nacional está forçosamente na dependência do avanço técnico”.

Vieira Pinto transmuta o conceito abstrato de amanualidade em conceito útil ao incorporar em seu bojo a história. Não a história em geral, mas a de cada nação em específico. De nada adianta falar do caráter amanual do mundo, “mas não dizer de que mundo histórico se trata”. O mundo histórico de que se está a falar sempre é um país, uma nação, situado na história, com determinada conformação social e em certa etapa de desenvolvimento dos processos produtivos e da sua cultura.

Para que o leitor tenha uma imagem panorâmica de uma das consequências do que tais conceitos apontam, basta um exercício simples. Uma passada d`olhos no site Flightradar24, que mostra o movimento de aeronaves no mundo inteiro ao vivo, explicita, como num grande painel, a resultante da história geopolítica de longa duração. Com efeito, pelo site é possível ver a quantidade de aviões, um índice da sofisticação tecnológica e do desenvolvimento, que sobrevoa os eixos desenvolvidos do mundo em contraste com aqueles que não tiveram acesso a este direito até os tempos atuais. Causa espanto a comparação entre a quantidade de voos presentes na Europa e na América do Norte em relação àqueles presentes na América do Sul e África.

Qual, portanto, o nó geopolítico desatado por Vieira Pinto? Trata-se de inocular no conceito de amanualidade e de trabalho os conceitos de nação e de história. Ora, como acima brevemente analisado, isso implica constatar que os saltos no desenvolvimento são dados pelas nações em função da quantidade de trabalho novo que conseguem introjetar no aspecto quantitativo do trabalho. Por que esta tarefa não se cumpre nos países subdesenvolvidos? Estariam estes, já há algumas décadas, paralisados por astúcias geopolíticas com vistas ao “congelamento do poder mundial”, como afirmara na década de 70 o embaixador Araújo Castro? Apontar com clareza, com as lentes vieirianas, as estratégias das nações imperialistas para impedir o acesso das nações subdesenvolvidas aos saltos históricos possibilitados pelo trabalho novo: eis uma tarefa da consciência crítica, e, sobretudo, da filosofia política da tecnologia.

*Uma versão mais ampla do artigo foi submetida ao Boletim CTS em Foco, da Associação Brasileira de Estudos Sociais das Ciências e das Tecnologias (ESOCITE), para compor o dossiê Dependência tecnológica e a emancipação nacional em Vieira Pinto.

Luiz Carlos Montans Braga é professor de Filosofia do DCHF da UEFS - em licença. É autor dos ensaios “A lente e o pince-nez: Machado de Assis, Espinosa e a cultura política no Brasil” (Cadernos Espinosanos), “Filosofia, alienação, dominação: Álvaro Vieira Pinto e o conceito de tecnologia” (no Prelo). Pesquisa, entre outros autores da filosofia brasileira, Álvaro Vieira Pinto e Gustavo Corção. E-mail: montansbraga@hotmail.com.

Conteúdo editado por:Jocelaine Santos
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