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A questão dos nomes dos países e continentes parece pequena, mas costuma gerar grandes controvérsias. Não raro, o debate sobre nomenclaturas se entrelaça com disputas políticas e disputas culturais, com tentativas de afirmar, negar ou transformar uma identidade nacional ou civilizacional.
Discute-se com frequência cada vez maior o sentido dos nomes dos países. Afinal, quem deu a um determinado país o seu nome? O próprio povo ou algum outro povo? O nome possui fundamento histórico enraizado, ou foi inventado por intelectuais estrangeiros e popularizado por soft power?
O caso do Irã é um caso clássico. O país, que se chamava Pérsia, passou a se chamar Irã em 1935. Mas esse já era o nome tradicional antigo do país desde pelo menos os Aquemênidas. Pérsia, por sua vez, é o nome grego para o país – nome que os iranianos absorveram tardiamente por submissão à influência cultural europeia.
E é curioso falarmos aqui no “grego”, porque há muito tempo causa irritação em todos os soberanistas gregos o nome internacional de seu país, “Grécia”, derivado do latim “Graecia”. Eles chamam o próprio país de “Hellas” e “República Helênica”, e muitos gostaria também de exigir que os países com quem mantém relações diplomáticas troquem os nomes pelos quais se referem a seu país. Em português, “Helênia” talvez ficasse interessante, e nos recordaria do papel da Guerra de Troia na construção de uma identidade macroétnica grega (ou helênica).
Mais recentemente, vimos a Turquia mudar oficialmente de nome para o nome turco de seu país, Türkiye, enquanto a Índia planeja sua mudança de nome para o tradicional e antigo Bharat.
Napoleão III queria um mecanismo por meio do qual ele conseguisse projetar a influência francesa em escala intercontinental. Às outras projeções macroculturais, os franceses desenvolveram um “pan-latinismo” com eles na proa.
Agora bem, não pretendo aqui discutir o nome do Brasil, ainda que também haja controvérsias sobre as suas verdadeiras origens. Me interessa nesse momento mais é a discussão (inexistente no Brasil) sobre o nome do nosso continente.
Eu, particularmente, quase nunca me refiro a nossa esfera civilizacional como "América Latina", diferentemente da quase totalidade das pessoas. Sempre uso o termo "América Ibérica" e o gentílico "ibero-americano". Essa é uma escolha pessoal, que considero historicamente fundamentada, mas o debate sobre o tema é de longa data e pode ser pincelado.
Há poucas controvérsias sobre a parte "América" do nome. Trata-se de uma homenagem ao explorador italiano Américo Vespúcio que, a serviço das coroas de Espanha e Portugal, explorou e ajudou a mapear o macrocontinente americano entre 1497 e 1502. O termo passou a ser usado por cartógrafos a partir do estudioso alemão Martin Waldseemüller, que em um planisfério criado em 1507 quis homenagear o explorador.
Dos cartógrafos o termo passa para os personagens políticos e se populariza a partir, principalmente, do século XVII. Até então, chamava-se comumente o espaço americano de "Índias Ocidentais" ou "Novo Mundo". Houve, porém, alguns impulsos por batizar o continente de Colômbia, Columbia ou Columba, em homenagem a Cristóvão Colombo. Personalidades como o frei Bartolomeu de las Casas assumiram essa “luta”, fadada ao fracasso. No século XIX, porém, o geógrafo francês Élisée Reclus ainda insistiu em deixar o termo “América” para a parte norte do continente, com o termo “Colômbia” para a parte sul. Poderia ter nos perguntado. Mas de qualquer maneira, nessa época o termo “América” já estava consolidado para nomear todo o macrocontinente.
A esse termo "América" geralmente são acopladas outras palavras que poderiam ser esmiuçadas, excetuando "Norte", "Sul" e "Central", que são termos autoexplicativos.
"América Latina" é o termo preferido pela esquerda brasileira e, na prática, o termo popularizado de forma geral. O termo, porém, possui uma origem peculiar sobre a qual a esquerda não se debruça e pela qual ela não demonstra interesse. Ele foi inventado pelo economista francês Michel Chevalier, nos anos 30 do século XIX e abraçada na época do reinado de Napoleão III, para uma finalidade político-geopolítica muito específica.
É que frente à Commonwealth britânica (e suas relações, às vezes conflituosas, às vezes simbióticas com os EUA), ao pan-germanismo nascente e ao pan-eslavismo promovido pela Rússia, Napoleão III queria um mecanismo por meio do qual ele conseguisse projetar a influência francesa em escala intercontinental. Para isso, ele precisava garantir a sua hegemonia sobre o nosso continente, o que lhe permitiria fazer frente a outras "Pan-Ideias" da época. Às outras projeções macroculturais, portanto, os franceses desenvolveram um “pan-latinismo” com eles na proa. A França, “filha mais velha da Igreja”, “coração cultural do mundo”, etc., seria a cabeça de uma Latinidade europeia e americana.
O projeto demandava, portanto, suplantar as raízes luso-espanholas por meio da ênfase em uma latinidade mais geral que incluiria a França, como seu centro. A "alma" da América Latina estaria em Paris.
O termo “América Latina”, e o projeto implícito nela, se espalharam facilmente pela América Ibérica nas décadas seguintes por causa da subalternidade cultural real em relação à França, que então possuía uma invejável e inegável influência cultural por boa parte do planeta.
Vejam que mesmo um Mario Vargas Llosa, considerado um dos maiores escritores da “tradição latino-americana”, dirá que teriam sido os franceses a descobrir a "alma da América Latina". As elites civis, militares e intelectuais, todas elas, eram educadas em Paris ou segundo os padrões parisienses.
O termo foi abraçado convictamente pela esquerda brasileira e com poucos questionamentos, consagrada em obras como “Veias Abertas da América Latina” e nos discursos de suas lideranças políticas, apesar das origens infaustas e pouco patrióticas, basicamente porque essa esquerda é extremamente afrancesada intelectualmente.
Todos os principais referenciais intelectuais da "esquerda anti-imperialista" brasileira dos anos 50-90 vêm da França: de Foucault a Deleuze, de Althusser a Derrida, de Beauvoir a Sartre. O Maio de 1968 ainda exerce um magnetismo insuperável sobre a “velha guarda” da esquerda brasileira, especialmente da esquerda de tendências mais “libertárias”.
Isso é reforçado pela aceitação passiva da designação de "latino" por parte dos EUA, também típica da esquerda brasileira.
Naturalmente, o termo pode ser ressignificado porque ele possui raízes que vão mais fundo que as pretensões geopolíticas francesas do século XIX e início do XX. Afinal, a ideia de “latinidade” pode também remeter a uma herança cultural e civilizatória romana que afunda nas brumas do tempo. Mas como nada disso é feito, ficamos com um termo com claras finalidades hegemonistas.
Os termos “América Ibérica” e “América Hispânica” também aparecem no início do século XIX, de forma mais orgânica e espontânea, mas não menos política.
Em geral, os pais dos movimentos de independência da Nossa América, como Simón Bolívar, se consideravam como "pan-americanos". Sua perspectiva sobre os EUA era bastante positiva e eles viam os países da nossa civilização e os EUA como estando engajados em uma mesma luta contra a ingerência europeia nas Américas.
Mas gradualmente, conforme a Doutrina Monroe começa a repercutir continentalmente, surgem desconfianças nas elites de muitos países do continente e elas começam a sentir, instintivamente, uma necessidade de se apartar dos EUA. É especialmente assim que começam a se popularizar conjugações como "ibero-americano" e "hispano-americano", como uma maneira de pensar a “Nossa América” como algo separado da América anglo-saxã.
Em geral, distinguem-se os dois termos por sua amplitude. O "hispânico" diria respeito apenas aos países que a Espanha ajudou a construir, enquanto o "ibérico" incluiria a obra portuguesa, ou seja, o Brasil. Essa distinção é aceitável, apesar de ser necessário apontar que, originalmente, a palavra "Hispania" designava toda a Península Ibérica para os romanos.
Os indigenistas rejeitam o termo "América" como uma imposição europeia. O termo mais popular nesse contexto é Abya Yala, que tem um caráter praticamente oficial entre os indigenistas contemporâneos desde sua aceitação geral pelo Conselho Mundial dos Povos Indígenas em 1977.
Um esclarecimento necessário deve ser feito quanto a uma comum confusão: há muita gente que acha que o termo "América Ibérica" (ou "Hispânica") incluiriam Portugal e Espanha. Naturalmente não, mesmo que a Conferência Ibero-Americana ajude a confundir a questão, ao abarcar os países ibero-americanos e os ibéricos em suas fileiras.
"Ibérica" e "Hispânica" são termos que visam especificar o "América". Qual América? A América Ibérica/Hispânica. É claro que, pela própria natureza da linguagem, se estivéssemos de fato nos referindo, por exemplo, às relações "ibero-americanas" permaneceria uma óbvia confusão quanto a se tratarem das relações entre os países da Nossa América, ou entre estes e os países ibéricos. A confusão, porém, pode ser facilmente solucionada transformando-se o "ibero-" em "ibérico-" no caso dessas relações internacionais entre a América e a Ibéria.
Esses termos são os mais usados entre os intelectuais soberanistas dos países vizinhos ao Brasil, como Marcelo Gullo, Alberto Buela e outros. Considera-se que termos como "América Ibérica" expressam perfeitamente a natureza mestiça da Nossa América, como fusão/síntese entre o mundo americano pré-colombiano e o mundo europeu que se dá nessas terras, ressaltando o caráter especificamente luso-espanhol desse “mundo europeu” que participou na formação do Brasil. Mas aqui no Brasil o debate ou reflexão sobre o tema simplesmente inexiste, com poucas exceções.
Como um pequeno excursus, poderia aqui incluir que um minúsculo ramo intelectual estrangeiro, de raiz católica germano-polonesa, tenta popularizar termos como "América Romana" ou "América Românica", em uma contraposição à “América Fenícia”, a anglo-protestante do norte, o que tem seus méritos simbólicos.
Finalmente, há também rejeições radicais do próprio termo "América", para nem falar em adjetivos supostamente "colonialistas" como não apenas a “Latina”, mas também a “Ibérica” e a “Hispânica”.
Os indigenistas rejeitam o termo "América" como uma imposição europeia a um continente que "já existia" antes de Colombo e Vespúcio.
O termo mais popular nesse contexto é Abya Yala, nascido entre os gunas panamenhos. Esse termo tem um caráter praticamente oficial entre os indigenistas contemporâneos desde sua aceitação geral pelo Conselho Mundial dos Povos Indígenas em 1977, no contexto da IIª Cúpula Continental dos Povos e Nacionalidades Indígenas, realizado na Suécia. Há outros, porém, como Anauhuac, Tawantinsuyu, Pindorama, Yvy Marãe'ỹ, etc.
Os problemas dos termos indigenistas são óbvios.
Em primeiro lugar, trata-se de uma falsificação um tanto quanto racista, na medida em que nivela as cosmovisões indígenas e trata todas como uma coisa só. Abya Yala, por exemplo, não é um termo que designa um continente, mas apenas a esfera delimitada das terras ancestrais dos gunas.
O mesmo vale para os outros termos. O "tupi" Pindorama, por exemplo, jamais foi o nome do "Brasil", menos ainda das "Américas," apenas o termo usado para designar as terras ocupadas pelos tupis. Esses e outros termos dos antigos povos americanos são autorreferenciais e situados. Eles não lidavam com abstrações geográficas como "continentes"; e evidentemente, não têm correspondência direta com as nações que emergem a partir das independências americanas.
Pior ainda é o fato de que, de inspiração "decolonialista", a intenção política por trás da substituição da América por esses termos é tentar desfazer "simbolicamente" o fato histórico da construção dos nossos povos e politeias a partir do processo de conquista, ocupação, colonização e miscigenação luso-espanhola.
Cancela-se a história, a cultura, a gramática e tudo mais, em prol de uma “revanche” que tenta negar os últimos 500 anos de sincretismo e integração.
Esse panorama permite vislumbrar que por trás de algo tão simples quanto o nome de um país ou continente pode haver muita bagagem cultural, além de disputas ideológicas, históricas, geopolíticas e culturais.
Raphael Machado é jurista, editor, analista geopolítico e presidente da associação Nova Resistência.
Conteúdo editado por: Bruna Frascolla Bloise