O novo Marco do Saneamento jogou luz sobre uma questão fundamental para todos os cidadãos: o direito do acesso universal à água. Desconsiderando diversas experiências internacionais que atestam o fracasso do modelo sancionado por Bolsonaro, a nova lei abriu espaço para a privatização da água brasileira.
Sob o pretexto de universalizar o saneamento básico até 31 de dezembro de 2033, o texto acaba com os convênios realizados entre os entes federados e empresas públicas. Com isso, após os vencimentos dos atuais contratos, as empresas públicas serão obrigadas a competir em licitação com a iniciativa privada para a realização dos serviços.
Na prática, é o fim da autonomia de escolha dos municípios e do Distrito Federal sobre o modelo de prestação dos serviços de saneamento e da possiblidade de gestão associativa entre estados e municípios por meio de contrato. A lei também prioriza o recebimento de auxílio federal para municípios que optarem pela concessão ou privatização dos serviços de saneamento, incentivando o processo de privatização.
É evidente que as empresas privadas só irão se interessar por áreas com alta rentabilidade, deixando os investimentos em áreas com baixa perspectiva de lucro para o Estado. O fim do chamado subsídio cruzado, segundo o qual o lucro em área populosa custeia o prejuízo em municípios menores, seguramente irá impactar no preço de tarifas, especialmente nas áreas mais pobres do país.
A privatização da água é mais um avanço do desmonte do estado de bem-estar social promovido pelo governo Bolsonaro, que vai na contramão da tendência mundial. Países como a França e o Canadá frearam o processo de privatização do saneamento básico por considerar esse um setor estratégico. Estudo do Instituo Transnacional revela que, de 2000 a 2019, 312 cidades, como Paris, Berlim e Buenos Aires, em 36 países reestatizaram os serviços de tratamento de água e esgotos em razão das tarifas muito altas e do não cumprimento das promessas de universalização. Outros fatores que levaram à reestatização dos serviços foram problemas de transparência e dificuldades de monitoramento do serviço pelo poder público.
Para piorar, o Marco do Saneamento de Bolsonaro não prevê qualquer contrapartida da iniciativa privada. Se em 2033 as metas de universalização não forem atingidas, o prazo é ampliado automaticamente até 2040, quando só então ficam suspensos os dividendos. Por essa lógica, as empresas ficam autorizadas a explorarem tudo o que puderem até 2040 e depois, não cumpridas as metas, devolvem o processo ao Estado. Seria pelo menos razoável que as empresas só pudessem começar a distribuir os dividendos a acionistas depois que uma determinada meta de universalização de cobertura de água e esgotos fosse atingida.
Não se trata de criminalizar a participação da iniciativa privada na gestão pública, mas garantir o Estado brasileiro como grande agente indutor do desenvolvimento e assegurar o controle do país sobre recursos estratégicos.
Os governos do PT provaram que é possível avançar na ampliação dos serviços de saneamento a partir de princípios como a universalidade, a integralidade, o controle social e a utilização de tecnologias apropriadas. Entre 2001 e 2012, mais de 17 milhões de domicílios passaram a dispor de esgotamento sanitário e outros 16 milhões, de rede de água encanada. Os principais avanços ocorreram em razão do PAC e da Lei do Saneamento, ambos em 2007.
O Brasil só irá se reencontrar com o crescimento, com o desenvolvimento, com a estabilidade e com a justiça social quando suplantar essa visão ultraneoliberal tardia e de desmonte do Estado, que não se mostrou capaz de oferecer soluções para os grandes desafios da humanidade, como a superação da desigualdade, da pobreza e da fome. Por isso, assim como diversas outras riquezas naturais estratégicas do país, a água deve continuar a ser um bem social de todo o povo brasileiro.
*Rogério Carvalho é senador (PT-SE).
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