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Suspender o transporte coletivo resolve? Algumas cidades e regiões o fizeram, a exemplo da Grande Florianópolis, e não resolveu. Mas não seria uma alternativa para reduzir a circulação de pessoas? Com certeza. Por outro lado, muitos serviços essenciais teriam de fechar. A questão é que o ônibus – ou melhor, o transporte coletivo – é um instrumento, e atende as pessoas que dele mais precisam. Neste momento a grande discussão é em torno da ocupação dos veículos, especialmente nos horários de pico. Por que essa ocupação continua alta nestes horários? Porque os trabalhadores continuam sendo obrigados a chegar a suas respectivas atividades como faziam antes da pandemia.
Historicamente o transporte coletivo, em qualquer lugar, tem sua maior ocupação nos chamados horários de pico. É quando as pessoas saem e voltam ao mesmo tempo. Isso ocorre aqui na nossa Região Metropolitana de Curitiba ou em Londres, quando no pico o metrô chega a 104% de sua capacidade. Sobre o sistema na gestão da Comec, que atende 19 cidades, um total de 822 ônibus operam ao mesmo tempo no pico da manhã, sobretudo atendendo a ligação com a capital. Depois das 8 horas, 54% dessa frota (442 ônibus) fica parada e retorna no pico da tarde. Para promover essa atividade há um quadro de pessoal, motoristas e cobradores, com jornada de trabalho de seis horas, exigindo de três até quatro turnos. O sistema funciona 20 horas por dia, com a mesma tarifa, independentemente do número de pessoas que estejam embarcadas, diferentemente do serviço de aplicativos, que somente atende quando chamado e cobra valores influenciados por demanda, horários e até condições climáticas.
Quando nos deparamos com o início da pandemia, ainda na primeira quinzena de março de 2020, fomos enfáticos em dois pontos. O primeiro, com muita clareza e responsabilidade, era afirmar a impossibilidade de praticar distanciamento social no transporte coletivo. Até porque isso também é impossível num automóvel que esteja com mais de duas pessoas. Em segundo, que só teríamos um atendimento diferenciado com a união de esforços e sensibilidade de patrões e usuários, promovendo o escalonamento e utilização do transporte fora dos horários de pico. E, diga-se de passagem, isso quase não aconteceu.
Antes de ser classificado como vilão, precisamos refletir que o ônibus é uma ferramenta. Se a demanda se concentra em determinado período e isso gera lotação, é porque lá na ponta existe toda uma cadeia exigindo que as pessoas cheguem ao seu destino justamente no mesmo horário.
Não se pode negar que existe uma crise no sistema, tendo em vista a forte queda no número de usuários e, consequentemente, da receita. É um contraste: cai o número de passageiros e aumenta o custo da operação. No caso da região metropolitana, o governo do estado do Paraná está aportando R$ 10,5 milhões mensalmente. Isso evita o colapso e paralisação do serviço, e vem segurando o valor da tarifa, que chega a mais de dois anos sem aumento para o cidadão.
Com intuito de oferecer o serviço com mais segurança, a Comec adotou junto às empresas operadoras a determinação de ocupação dos ônibus com até 65% da sua capacidade. O que é isso? Um ônibus articulado que, por normas técnicas, tem capacidade de transportar 140 pessoas, com a limitação de 65% pode levar um máximo de 91 passageiros. Acontece que esse veículo tem 35 bancos, ou seja, mesmo com ocupação reduzida ele terá 56 pessoas em pé. Essa é a conta que muitos não entendem. Mas o transporte coletivo é feito, desde a sua origem, contando usuários sentados e em pé. A planta do ônibus, desde a fábrica, é assim.
Vale ainda explicarmos uma outra questão seguidamente ventilada durante a pandemia, que é a do funcionamento da operação apenas com passageiros sentados. Para que isso fosse possível, levando em conta o total de pessoas que utilizam o serviço atualmente, seria necessário triplicar a frota e ainda aumentar consideravelmente a tarifa do usuário, já que o custo se elevaria expressivamente. Como não existe essa possibilidade de triplicação de frota e há intenção de não onerar o usuário nesse momento de crise, é impossível operar o serviço apenas com lotação de bancos.
O transporte metropolitano gerido pela Comec transportava, antes da pandemia, 455 mil pessoas por dia, número que atualmente fica na média de 260 mil. Portanto, são milhares de pessoas que continuam saindo de casa para trabalhar e conquistar o sustento das suas famílias. Em meio a uma pandemia, somos sensíveis a esse grande desafio que cerca o sistema público do transporte coletivo. Há muita responsabilidade na gestão do serviço, especialmente para que ele não entre em colapso e deixe sem alternativa todo esse volume de trabalhadores. Mas é preciso que os julgamentos, comparativos e críticas venham acompanhados do mínimo de conhecimento de como se dá todo o seu funcionamento. Estamos falando do atendimento a cidades que estão distantes de 10 até 60 quilômetros da capital; 80% delas não possuem transporte urbano, inclusive as maiores, como Colombo, Pinhais e Fazenda Rio Grande, cabendo à Comec ir além de suas competências e suprir demandas que seriam do poder público municipal.
O Brasil e o mundo enfrentam o pior momento da história com uma pandemia que castiga a humanidade. Muitos setores foram fortemente afetados, outros resistem, e o transporte coletivo faz justamente essa travessia. O que será do seu futuro ninguém pode prever, mas o passado e o presente mostram o quanto ele é essencial e indispensável para toda sociedade.
Gilson Santos é diretor-presidente da Coordenação da Região Metropolitana de Curitiba (Comec).