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Síntese 1

O outro lado da pirataria

Reportagens sobre pirataria costumam ser contundentes e passam a impressão de que se trata de algo abominável, um crime quase hediondo. Há inúmeras propagandas contra esse mal, comparando seus protagonistas com os traficantes, e até jocosos jingles atribuídos ao Ministério da Justiça. Esse é, apenas, um ângulo do fenômeno. Aqui quero abordar o outro.

A proteção às marcas famosas, aos inventos – enfim, aos direitos relativos à propriedade industrial – cria um mercado cativo, senão um monopólio, excepcionando o princípio constitucional que veda o abuso do poder econômico (dominação dos mercados, aumento arbitrário dos lucros e restrição à livre concorrência). Trata-se de um privilégio de exploração exclusiva, uma "zona de exclusão da concorrência", que tem conferido ganhos estapafúrdios aos seus contemplados, e cerceado, sem fomentar, o desenvolvimento tecnológico. A pequena flexibilidade, que antes havia nessa área, desapareceu quase por completo com a rigidez da atual Lei de Patentes e com a dos Programas de Computação, editadas na década passada, com as quais o Brasil, como bom moço, deu apressadamente cumprimento ao Acordo sobre Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio, conhecido como Acordo Trips (Trade Related Aspects of Intellectual Property Rights), para sair da lista negra do "Tio Sam".

A pirataria entra nesse contexto (no choque entre os dois mundos, desenvolvido e em desenvolvimento) como um mal necessário; por causa dela, os preços de muitos produtos licenciados têm sofrido alguns ajustes. Ninguém compraria produto pirata se não houvesse exorbitância no preço do original.

Onde, porém, não há condições de imitação, por causa do apuro técnico ou do risco para a saúde do homem, as abusividades não se contêm. Prova disso está em que, a partir do momento em que o legislador nacional, investindo contra a tradição de não conceder patentes a produtos relativos à saúde (remédios e alimentos), por ser um bem da vida inegociável, atendeu às exigências das multinacionais controladoras desse mercado em que rareiam os corsários. As altas desses produtos têm superado todos os índices de custo e/ou de desvalorização da moeda com o beneplácito dos agentes reguladores, a ponto de, só num caso isolado e ímpar, ter sido acionado o mecanismo do licenciamento obrigatório. Isso é muito pouco para a contenção dos exageros.

Claro que não defendo nem pretendo o incentivo da conduta marginal, mas sustento que é preciso dar atenção a esse outro lado da questão e discutir, também, o abuso do poder econômico que, sem nenhuma cerimônia, vem sendo praticado no Brasil, principalmente por multinacionais estrangeiras. As autoridades podem começar pelo levantamento do custo do produto, da margem de sua comercialização e do preço pago pelo consumidor..., se não preferirem criar outros tantos estribilhos com o propósito de inibir as ações dos gângsteres das patentes e os ameaçar de cadeia para equilibrar o jogo.

Fico a imaginar o que deve passar pela cabeça do operador da máquina, que não faz as regras, mas que tem por ofício cumpri-las, ao destruir os produtos desconformes, lembrando de seu vizinho, cidadão como ele que, sem oportunidade igual na vida, dedica-se ao trabalho in-formal de comercialização de CDs piratas, suscetível de ser interrompido, a qualquer tempo, por uma compressora a esmagar seu estoque. No fundo, certamente estará pensando nos azares da sorte e em alternativa mais inteligente e menos bombásticas de dar destino às mercadorias apreendidas.

Alfredo de Assis Gonçalves Neto é advogado, professor da UFPR e terceiro árbitro brasileiro no Tribunal de Arbitragem do Mercosul.

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