Ninguém encarna como Carl Schmitt (1888–1985) a figura do intelectual amaldiçoado pelas ideologias. O seu tempo ficou marcado por esse “imponderável” que uns dizem ser a ação da Providência no mundo, outros a prova irrefutável da existência do diabo. Muitos foram os intelectuais que, pela sua colaboração com os regimes fascistas do séc. XX, foram estigmatizados pela opinião pública, em geral publicada – relembrando o velho Churchill, que chegou a intentar uma aliança com Mussolini, pois sabia que o autoritarismo fascista não se comparava à tirania hitlerista.
Houve tempo em que se não poderia conceber o paroxismo a que chegaria o nacional-socialismo, sobretudo no contexto alemão daquele período. Em 1932, Carl Schmitt via a Alemanha acossada pela insolvência liberal e por dois movimentos que se digladiavam nas ruas – o nacional-socialista e o comunista. Schmitt optou por apoiar o partido que ainda não dera provas de destruição. Foi acossado pela indigência dos tempos.
Conhecer a obra e o pensamento de Carl Schmitt nos ajuda a entender o que está acontecendo hoje no Brasil e como os próximos anos poderão ser decisivos – com ou sem soberania judiciária.
É impressionante a vitalidade desse jusfilófoso. Suas principais teses ainda nos dizem muito. Seus livros estão à disposição em qualquer parte do mundo. Mesmo o Brasil parece estar atento à sua importância, com diversas edições publicadas. O ano passado marcou o centenário de um livrodo mestre alemão Teologia Política: quatro capítulos sobre a doutrina da soberania.Livro estupendo.Um dos mais eminentes acadêmicos europeus – Alexandre Franco de Sá, da Universidade de Coimbra – preparou modelar tradução da Teologia Política, a sair em breve. Uma exposição de seus postulados pode explicaro que se vem passando no Brasil, em que o STF parece se consolidar como instância “moderadora” das instituições.
“Soberano é quem decide sobre o estado de exceção” – assim inicia Schmitt o seu livro de 1922, logo enunciando a premissa de sua teoria do “decisionismo” político e jurídico. A União Soviética, com a sua violência inaudita, representava então a grande ameaça ao chamado “mundo livre”. Em face disso, o Ocidente ensaiava algumas reações autoritárias para conter o perigo comunista, em especial com a ascensão de Mussolini ao poder na Itália, naquele mesmo ano. O “decisionismo” foi a teoria que conformou tal a reação.
O “decisionismo” pretendeu estabelecer uma autoridade política moderadora com o propósito manifesto de se impor politicamente
Constatada a absoluta politização da vida social, tomado o Estado por grupos ideológicos os mais diversos, teorizou Carl Schmitt a necessidade de uma autoridade capaz de evitar o desmembramento estatal e a destruição da comunidade política. Contrariamente a uma concepção normativista do direito – com o que se fez adversário intelectual de Kelsen –, pareceu-lhe que somente uma “decisão” soberana apartada das normas jurídicas poderia ser o garante das instituições, de modo a se oferecer um obstáculo aos grupos ideológicos.
O “decisionismo” pretendeu estabelecer uma autoridade política moderadora com o propósito manifesto de se impor politicamente, situando-se acima do ordenamento jurídico – daí a correlação com a excepcionalidade institucional, cuja regulação compete ao soberano. Em linhas gerais, eis a tese do “decisionismo” de Carl Schmitt – que tanta influência ainda exerce em alguns luminares, supostos ou reais, no Brasil.
Alexandre Franco de Sá se fez autoridade no estudo do pensamento de Carl Schmitt, como os livros Catolicismo romano e forma política e O conceito do político, e sobre o qual dedicou as coletâneas Metamorfose do poder e Poder, direito e ordem. Recentemente, partindo de premissas schmittianas, publicou Ideias sem centro — esquerda e direita no populismo contemporâneo.
E, entre nós, um talento parece manter a excelência do debate intelectual em torno do jusfilósofo alemão – Alexandre Marques publicou ano passado o imperdível A religião de Carl Schmitt, com o que procurou rastrear um fundamento cristão na obra de Schmitt. Conhecer a obra e o pensamento de Carl Schmitt nos ajuda a entender o que está acontecendo hoje no Brasil e como os próximos anos poderão ser decisivos – com ou sem soberania judiciária.
José Lorêdo Filho é editor da Livraria Resistência Cultural Editora.