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Recentemente li a saga O Problema dos Três Corpos, do escritor chinês Cixin Liu e composta de três volumes, sendo o segundo chamado A Floresta Sombria e o terceiro, O Fim da Morte. Indico veementemente a leitura para quem compartilha comigo a paixão ao mesmo tempo pela física e pela ciência política.
Na história, os habitantes da Terra conseguem contato com uma civilização próxima chamada Trissolaris, que habita o sistema estelar de Alpha Centauri, a pouco mais de quatro anos-luz de distância da Terra. Sem contar muito do livro, para não dar spoiler a quem eventualmente se interessar pela saga, direi somente que chega um momento em que a civilização trissolariana busca ocupar a Terra e aniquilar seus habitantes. Todavia, descobrimos um “mecanismo de dissuasão universal” que é aplicado contra Trissolaris, fazendo essa civilização suspender o iminente ataque.
Refleti bastante sobre a dissuasão utilizada e percebi o quanto técnicas semelhantes são utilizadas dentro do espectro de discordâncias políticas da nossa sociedade. Um dos maiores exemplos é o caso do atual PL das Fake News.
É bem possível que existam alguns tipos de pessoas que acompanham esse projeto e tenham opiniões divergentes. Mas, entre os que o apoiam, vale a pena separá-los em dois tipos: os “desavisados bem-intencionados”, que possivelmente desconhecem os potenciais impactos de longo prazo de um PL como esse; e os “estrategistas dissuasores”, que usam a ameaça do PL como um mecanismo de dissuasão contra seus adversários políticos.
No que diz respeito aos que realmente podem conhecer os efeitos de longo prazo e, ainda assim, chegam a apoiar integralmente o projeto até as suas últimas consequências, gosto de pensar que eles sejam a exceção da exceção. Prefiro crer que quase a totalidade da nossa sociedade, incluindo aí a classe política, se encontra nos dois grupos previamente supracitados. Afinal, independentemente da crença ideológica de cada pessoa, muito provavelmente todos querem, no fim, viver em uma sociedade melhor, democrática, rica e justa.
Com relação ao primeiro grupo, o dos “desavisados bem-intencionados”, há de serem alertados no sentido de tomar cuidado com o que chamamos na ciência econômica de “efeito cobra”. De forma resumida, ele mostra que às vezes uma política pública proposta como solução pode acabar criando um problema ainda maior do que se tinha antes de executar essa política para tentar resolvê-lo.
O PL das Fake News é um exemplo nítido de ocorrência do “efeito cobra” se posto em prática: temos claramente um problema público: a quantidade de fake news circulando de forma descentralizada, gerando uma tonelada de desinformações e desentendimentos, fazendo com que a sociedade, por causa dessas falsas notícias, venha a ter comportamentos potencialmente nocivos tanto individual quanto coletivamente. Todavia, os possíveis efeitos colaterais de uma proposta como essa precisam ser melhor avaliados. Entre eles há a concentração do poder de informação voltando para a mídia tradicional, podendo causar a aniquilação dos canais de informação descentralizada e restrições à liberdade de expressão. Dar poderes a instituições, empresas ou plataformas para decidir o que é verdade ou mentira é um tiro no peito da liberdade de consciência; é um retorno da mídia tradicional, que injeta “informações completas, prontas e embaladas” no coletivo social com o intuito de influenciá-lo de acordo com o seu viés. Coisas que, no fim das contas, pode não se diferenciam muito da censura praticada durante o regime militar. A partir desse aparato de controle da mídia até começarmos a banir livros subversivos, como os nazistas fizeram, é um pulo.
Como sociedade, devemos tolerar inclusive as inconveniências de um regime democrático em vez de nos tornarmos lenientes em relação a atitudes autoritárias com o objetivo de restringir direitos alheios simplesmente por divergência de opinião. Talvez a solução para a desinformação não seja restringir a informação, mas sim mais e mais informação. Quem consome a informação que faça seu próprio julgamento sobre ela.
Com relação ao segundo grupo, o dos “estrategistas dissuasores”, eles são bem interessantes. Boa parte deles é integrante ou próxima da classe política. Pessoas que sabem jogar o jogo. Dentro de um processo eleitoral em que o debate e a campanha podem ser contaminados diante de uma avalanche de notícias falsas, gerando potencialmente algum grau de mobilidade social e mudança de expectativas e voto, ameaçar veementemente os que tradicionalmente usam os mecanismos das fake news como estratégia política e de campanha a restringir esse tipo de liberdade é um mecanismo que tende a fazer os espalhadores das notícias duvidosas “pisarem o pé no freio”.
É evidente que, dentro desse sistema de dissuasão montado, já podemos perceber uma certa queda na quantidade de informações duvidosas disseminadas no nosso meio social. Possivelmente a ameaça do PL é uma boa estratégia que funciona. Todavia, como sociedade, devemos ter cuidado para que isso de fato não venha a passar de uma ameaça. E você? Se está até este momento apoiando o PL das Fake News, em qual desses grupos você se encaixa?
Lucas Pedrosa é gestor público.