Até onde e quando irá essa mistura de selvageria, oportunismo político de grupelhos radicais e alegre impunidade para bandidos de todos os naipes em que estão se transformando inexoravelmente as "manifestações populares" de São Paulo e Rio? Enquanto continuarmos a ver os governantes dos dois estados completamente apalermados diante do que está acontecendo, balbuciando explicações inconsistentes, demonstrando não apenas despreparo técnico, mas igualmente dubiedade, ingenuidade política e incapacidade de entender a real dimensão do risco que as instituições estão correndo, não é possível prever.
Some-se a isso o beletrismo e o bizantinismo de uma parte de nossa elite cultural e jurídica e uma indisfarçada simpatia juvenil pelo desafio à ordem que muitos jornalistas e observadores mais jovens não conseguem esconder, atribuindo-lhe caráter gramsciano, e o caldo de cultura para o desastre está feito. Não acreditam? Como diria Groucho Marx, o que vocês preferem: acreditar em mim ou nos seus próprios olhos?
Vemos a todo momento na tevê: grupos violentos não surgem nos lugares como por encanto; vêm em carros, ônibus, trens, caminhões, a pé, e têm sido filmados pela imprensa sem qualquer dificuldade. Onde estaria, então, a dificuldade de a polícia se antecipar, pará-los, revistar mochilas, verificar documentos? Grupos de depredadores e saqueadores têm sido filmados agindo com absoluta desenvoltura. Mas, se o cinegrafista estava ali, a poucos metros, onde estava o agente da ordem para coibir seu vandalismo?
E aí vem o beletrismo entranhado em nossa cultura e nossa história: um caminhão que havia sido roubado por "manifestantes" é filmado trafegando na contramão em uma rodovia, passando por carcaças de veículos em chamas, enquanto a polícia observava do acostamento. A explicação? Ora, tratava-se de uma rodovia federal e portanto só policiais federais poderiam agir. Não é um primor? A estrada em polvorosa, veículos em chamas e os políticos/burocratas discutindo a jurisdição sobre a via...
Não se pode parar alguém e examinar sua mochila por receio de violar seu direito à privacidade... E se houver um coquetel molotov dentro dela? Nada a fazer, uma vez que o artefato não foi lançado e, portanto, não há nenhum crime em carregar uma garrafa cheia de gasolina com um pavio; quem sabe o portador pretendesse lavar algumas peças sujas de graxa de um carro enguiçado... Surrealismo explícito! Que direitos devem ter precedência (pois em toda sociedade civilizada há direitos que precedem outros) nesses episódios? O direito de qualquer pessoa a ter sua vida e sua propriedade protegida contra a violência e o esbulho, ou o direito à privacidade das mochilas?
E assim ataca-se e destroi-se o patrimônio alheio sob os olhares aparvalhados da polícia e lenientes da Justiça e do Ministério Público, que se esmeram em manter aparências de atuação sem se preocupar com a eficácia do que estão fazendo; no começo os alvos eram os bancos e os vândalos defendiam sua fúria destruidora demonizando o sistema financeiro e o lucro dos grandes banqueiros. Agora são pequenos comerciantes e bancas de jornais, caminhoneiros autônomos e passantes inocentes, que pagam a mensalidade de seus veículos com seu suado trabalho e dificilmente podem ser enquadrados entre os "tubarões" capitalistas, que estão sendo saqueados e "expropriados" de maneira sumária e violenta.
O perigo é evidente. Democracias muito mais consolidadas e institucionalmente aparelhadas que a nossa sofreram abalos profundos quando enfrentaram problemas semelhantes com igual incompetência. Lembremo-nos do que aconteceu na Itália mussolinista e na Alemanha hitlerista quando grupos privados armados agiram sem controle nas ruas. Qualquer semelhança não é mera coincidência.
Belmiro Valverde Jobim Castor é professor do doutorado em Administração da PUCPR.