“Assim como a liberdade de pensamento é absoluta, o mesmo se dá quanto à liberdade de expressão, que é ‘inseparável’ da liberdade de pensamento. Ademais, a liberdade de expressão é essencial não só por si mesma, mas por amor à verdade, que requer absoluta liberdade para a expressão das opiniões impopulares e mesmo daquelas comprovadamente falsas. Na verdade, opiniões falsas e impopulares são tão importantes à verdade que devem ser encorajadas e disseminadas, caso necessário, por ‘advogados do diabo’.” — Gertrude Himmelfarb, Ao Sondar o Abismo. É Realizações Editora, p.104.
No dia 03 de maio comemoramos o Dia Internacional da Liberdade de Imprensa, criado pela Unesco — Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura, através da Decisão A/DEC/48/432 de 1993. A data foi criada para alertar sobre as censuras feitas a jornalistas, colunistas e redatores que sofrem perseguições — e coisas piores — por divulgarem informações e analises sobre a sociedade. A data tem como objetivo celebrar um direito: o de todos os trabalhadores da mídia de poder investigar, pesquisar e publicar informações e opiniões de maneira livre numa sociedade democrática.
Na história da humanidade existiram diversas tentativas de controlar esses trabalhadores dos meios de comunicação. A essas tentativas — quando bem sucedidas — chamamos de censura. A censura é o oposto da liberdade de imprensa e sua forma mais comum se dá em uma ditadura, que por sua vez é oposta à democracia. A censura é um dos braços da manutenção do poder ditatorial, todavia, penso que atualmente não podemos mais falar em censura, mas em censuras.
Há uma diferença interessante na mecânica da censura dos regimes ditatoriais do passado e as mecânicas de hoje, ainda que estejamos vivendo numa democracia republicana. Como escreveu o historiador Itamar Flávio em Golpe de 1964: o que os livros de história não contaram: “Esse é o paradoxo do nosso tempo: no período militar, a censura era explícita e punia os infratores abertamente; hoje a censura é feita de forma mascarada, velada, punida com o ostracismo, o constrangimento, a perseguição e também de maneira ortodoxa com intimidação das pessoas. O que sobressai hoje se chama ditadura do consenso. E quem a promove é a patrulha do pensamento politicamente correto.”
A censura atual é fraca. Mas não se engane. É fraca porque se esconde atrás de mantos de moralismo e de falsa piedade. Diferente da outra censura, esta não ataca para calar, ela cala para atacar. É uma força fraca que, parafraseado G. K. Chesterton é uma força mais difícil de conquistar, pois se faz de fraca para contra-atacar. Essa censura ditatorial é promovida pela patrulha do politicamente correto e seus mecanismos que veremos mais adiante. Mas, primeiro, o que é o politicamente correto e como ele funciona?
O politicamente correto é uma teoria — uma especulação metafísica — que conforme o psiquiatra britânico Theodore Dalrymple resumiu em sua obra Podres de Mimados, é “[…] a tentativa de reformar o pensamento tornando algumas coisas indizíveis.” O politicamente correto postula que o indivíduo está acima da verdade e dos fatos. Sendo assim, se o que for dito — por mais científico ou verdadeiro que possa ser — acabar ferindo as perspectivas e as subjetividades de algum indivíduo, não deve ser refutado ou posto à prova (como ocorrem nos debates públicos das democracias), mas suprimido, como é de praxe das ditaduras.
Percebam que segundo a patrulha, é preciso reformar o pensamento social em esferas gerais — escola, família, meios de comunicação. Mas como fazer isso? Debates? Disputas intelectuais? Não… “[…] tornando algumas coisas indizíveis.” A maneira pela qual os agentes do politicamente correto escolheram para “moralizar” e aperfeiçoar a linguagem humana é excluindo seus oponentes do debate.
Essa exclusão — que acredito ser a maior ameaça à liberdade de imprensa no séc. 21 — tem uma mecânica distinta, uma mecânica semântica e podemos perceber isso de maneira mais nítida nas acusações de intolerância que fazem a patrulha aos seus interlocutores. Em 2019, como colunista de um jornal do interior do norte do Paraná, vivi na pele as implicações de um conjunto de indivíduos que acreditam na censura e na ditadura consensual como meios de purificação e redenção da mídia e usam o novo método, o que chamo de mecânica semântica, do politicamente correto: a mutação da atividade de diferir em grosseria da intolerância.
Na época, fui publicamente acusado de homofobia, LGBTfobia e outras coisas mais, por conta de um artigo publicado onde tratei de uma reflexão a respeito da defesa que fizeram Sir Roger Scruton (1944–2020), Rev. Douglas Wilson e a jornalista dinamarquesa Iben Thranholm, sobre a importância do resgate da masculinidade para a segurança física das mulheres europeias e os efeitos negativos na sociedade em geral da filosofia feminista e da efeminização dos homens. Era um artigo de opinião e esperava ser, pelo menos, tolerado numa sociedade democrática.
O fato é que após a publicação, como disse, recebi várias e infundadas acusações, que resultou num constrangimento por parte da redação daquele jornal. Sem muitos detalhes, a minha relação dentro da empresa com os demais colegas ficou insustentável, principalmente quando os diretores decidiram se dobrar à ditadura do consenso publicando uma nota oficial rechaçando seu próprio colunista. Hoje não faço mais parte daquela equipe, mas após esse tempo⁷, lições podem ser retiradas daquele evento, e uma delas é a respeito do novo método de censura; mais uma vez: a mutação da atividade de diferir em grosseria da intolerância. Vamos entender.
Uma das acusações que recebi com grande ênfase foi a de ser intolerante com as diversidades sexuais, porque no texto, discordo enfaticamente delas. Essa acusação pesou em grande parte para minha saída. Mas veja, a própria acusação de intolerante não expressa a realidade do ato de alguém escrever um artigo que vá contra o pensamento dominante. William Lane Craig — filósofo e apologista cristão — na obra Hard Questions, Real Answers destaca que “[…] o real conceito de tolerância requer que uma pessoa não concorde com aquilo que ela tolera.” Isso significa que, para ser um tolerante, você não deve ocultar sua opinião ou sua interpretação da realidade por medo de ofender quem pensa diferente — o que resume a busca do politicamente correto na linguagem.
Na verdade, o verdadeiro tolerante é aquele que corajosamente discorda, contrapõe-se e faz assimetria discursiva. E a sua base para isso é a liberdade de imprensa garantida por lei. O tolerante não busca técnicas de supressão por meio de censuras de consenso ou de subjetividade intocável. Tolerar algo — por necessidade semântica — é discordar e suportar o interlocutor. Contudo, a grande técnica da ditadura atual do politicamente correto está aqui: transformar os intolerantes em tolerantes, transformando o conteúdo da palavra tolerante em alguém que aprova qualquer coisa passivamente, enquanto o intolerante alguém que discorda.
Essa é uma manipulação suja, não sendo sem razão a crítica que fez o teólogo David Platt em seu livro Contracultura: “O maior pecado da nossa cultura é a intolerância e, no entanto, nossa definição de intolerância é ironicamente intolerante. […] Basta alguém dizer hoje em dia que a atividade homossexual é errada ou pecaminosa para que seja imediatamente chamado de ‘intolerante’. […] Somente porque crê em algo diferente do que os outros creem, ela é rotulada de ‘intolerante’. Contudo, tal rótulo, estranhamente, impõe uma derrota a si mesmo. Quem chama alguém de ‘intolerante’ não manifesta, na verdade, uma intolerância semelhante em relação à crença do outro?”
A própria ideia de tolerância exige um desacordo. Por outro lado, o verdadeiro intolerante, busca o fim, o enforcamento e a morte do contraditório. O estranho lhe assusta e sua busca será a completa — por vários meios — anulação do espaço de fala do “estranho” e de suas ideias “estranhas”. Certamente, não é escrevendo textos que vão contra a maioria que você torna a liberdade de imprensa uma atividade ameaçada. Você suprime a liberdade da atividade jornalística quando milita pela aniquilação da expressão daqueles que escrevem contra a maioria ou a minoria. Que essa mutação semântica da patrulha ditatorial do “policialmente correto” não avance, e que a liberdade de imprensa possa ser comemorada em muitos outros “maios”.
Fernando Razende é pesquisador em História, atuante com rádio/comunicação, assessoria e mídia; escritor de artigos de opinião e matérias jornalísticas.