Lugar de recorrentes conflitos bélicos, a simples menção da Crimeia faz desde logo evocar a guerra e seu cortejo de tragédias. Agora, no pesaroso fim de ano, a península ucraniana volta à lembrança, em mais um capítulo do ancestral confronto pan-eslavo, de culturas forjadas a ferro e sangue. Embora seja mais um de tantos episódios milenares de tensão entre russos e vizinhos, agravam-se os atuais perigos, com o envolvimento direto da União Europeia e Estados Unidos, de desdobramentos imprevisíveis, a poder produzir a mais complexa crise internacional do pós-guerra.
A presença latente do ímpeto imperial russo, ferido pela decadência econômica e pela exaustão de modelo, equivale a combustível sempre ativo, prestes a implodir em conflitos regionais nostálgicos de kremlins e de rublos. Com percurso histórico de guerras imemoriais, de invasões, ocupações e deportações, a Ucrânia personifica esses dramas, em seus quase 50 milhões de habitantes e de problemas. De ódio aos russos a separatistas que, ao contrário, desafiam Kiev e anseiam por invasão, há todo um rol de contradições de uma pátria confusa, há séculos em busca de si mesma, muito grande para ser apenas Estado-tampão, mas ínfima para enfrentar o vizinho poderoso, constrita a entregar seu arsenal nuclear.
Embora inconteste berço de cultura comum, a Ucrânia, que significa “fronteira” em etimologia eslava, ainda segue em sua elaboração de pertencimento, do constructo como nação, não obstante o heroísmo histórico de seu povo, das guerras napoleônicas à Segunda Guerra Mundial e à Guerra Fria. Vítima de opções econômicas desastradas, com hábitos políticos herdados da gestão comunista, o país destila infortúnios, como se recorrentes separatismos fossem motivos únicos de endêmico atraso. O dilema se agrava na crise que agora escala, com a intromissão europeia de forma expressa, econômica e militar, aqui com a proposta de adesão à Otan consentida pelos Estados Unidos, em atitudes tomadas como intoleráveis por Moscou. Decerto, se a Rússia sem a Ucrânia é país, a Rússia com a Ucrânia é império.
Com a paz por um fio, muitos são os apelos e ultimatos da comunidade internacional, como os dos chanceleres do G20, recém-reunidos justamente na emblemática Liverpool, com o apelo da cidade em que os campos de morango serão para sempre. Teria sido por acaso?
Já disparado o alarme internacional que clama por contensão e distensão diplomática, a envolver grandes chancelarias do mundo, no plano interno o conflito traz para os ucranianos o enfrentamento que subjaz entre regiões, populações e gerações, inconciliáveis em preconceitos e dogmas. Contingentes humanos que se rechaçam em valores e ideais, com visões de mundo inconciliáveis, como na sombria e guerreira Donetsk, dispostos a todos os sacrifícios pela grandiosidade eslava, em oposição à colorida e ensolarada Lviv, hedonista e obcecada de ocidente, consumismo e modernidades.
Com a paz por um fio, muitos são os apelos e ultimatos da comunidade internacional, como os dos chanceleres do G20, recém-reunidos justamente na emblemática Liverpool, com o apelo da cidade em que os campos de morango serão para sempre. Teria sido por acaso? Por certo, apesar da contingência sincera de querer dar-se uma chance à paz, infelizmente os resultados práticos do summit foram pouco produtivos, a deixar às escâncaras a perigosa visão panglossiana de geração de líderes particularmente medíocres, sem o engenho de Monnet, a discrição de Kissinger ou a contundência de Merkel. Sem atores à altura das dificuldades que o tempo requer, com riscos reais à manutenção da paz mundial, sem que a história tenha terminado ao fim da Guerra Fria, como singelamente chegamos a crer com Fukuyama.
A par da experiência histórica do fracasso de políticas de apaziguamento em relação a eslavos e a seus imbroglii, bem como do pouco êxito de saídas pacifistas lastreadas em direito internacional, apenas alenta a certeza de serem as guerras no presente agônico da humanidade mais que imponderáveis. Máxime face a consequências tão imprevisíveis, a mesclar complexas componentes identitárias e socioeconômicas, emolduradas em macro contenda geopolítica, de tantos e de tão difusos interesses. Como se percebe, nem sempre, como na mitologia grega, a culpa pode ser apenas da vaidade das deusas e de suas maçãs.
Jorge Fontoura é advogado e professor.