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O artigo “O que é o Positivismo, a filosofia política que faz a cabeça dos militares brasileiros”, escrita pelo jornalista Rafael Salvi e publicada na Gazeta do Povo em 4.5.2020, é uma coleção inacreditável de mitos, invenções arbitrárias e erros sobre o Positivismo, sobre seu criador, Augusto Comte, e sobre a atuação dos positivistas no Brasil; praticamente todas as suas informações estão erradas, o que é mesmo notável. Aliás, não por acaso, entre suas fontes – todas elas de segunda, terceira ou quarta mãos – estão Olavo de Carvalho e João Camilo de Oliveira Torres, dois intelectuais conservadores e produtores em série de mitos, invenções arbitrárias e erros. Na mesmíssima senda anda Rodrigo Constantino, celebrado “autor” – mas não “pesquisador” nem “historiador”, nem “filósofo” – da nova direita radical brasileira. Todos eles colecionam, como se fosse uma competição, tolices e erros sobre o Positivismo.
Comecemos pela obra do francês Augusto Comte (1798-1857), fundador da Sociologia, da História das Ciências, do Positivismo e da Religião da Humanidade. A sua principal obra foi o Sistema de política positiva (1851-1854), em que, repetindo várias considerações pacifistas presentes em sua obra preparatória do ponto de vista intelectual (o Sistema de filosofia positiva (1830-1842)), ele afirma com todas as letras que a política moderna tem que ser pacifista e civilista, que as forças armadas devem ser dissolvidas e que as forças policiais devem ter um caráter cidadão e de manutenção da ordem pública. De maneira correlata, a política moderna deve caracterizar-se pela “separação entre os dois poderes”, ou seja, pela separação entre os poderes temporal e espiritual, em que o Estado não tem religião oficial e as religiões não se beneficiam do poder do Estado – o que em termos gerais equivale à laicidade do Estado. Política pacifista, civilista e laica: as liberdades de pensamento, de expressão e de associação são a base da organização social e política e esta, por sua vez, fundamenta-se na fraternidade universal e no respeito mútuo. O resultado disso tudo é que a política moderna – republicana – é cada vez mais regulada pela moral, pelos valores, e, de maneira concomitante, cada vez menos regulada pela força física.
Uma outra consequência da “separação entre os dois poderes” é que o governo não pode ser constituído pelos “sábios” ou pelos técnicos. Evidentemente é necessário que o Estado tenha seus técnicos, assim como um corpo burocrático responsável pela realização das políticas públicas; todavia, há uma gigantesca diferença entre o Estado possuir um corpo técnico e esse mesmo Estado ser dirigido pelos técnicos. Augusto Comte dizia com todas as letras que os “sábios” não podem mandar no Estado; esse regime político era por ele chamado de “pedantocracia” (palavra criada por Stuart Mill) – “governo dos pedantes” – e, em termos atuais, ela poderia ser chamada de “tecnocracia”. Para Comte, o governo deve ser dirigido por cidadãos com espírito público, visão de conjunto, sensibilidade social, tolerância e fraternidade – e sempre atentos às opiniões e avaliações da opinião pública.
Vale notar que, justamente porque era movido por um espírito histórico, relativo e altruísta, Augusto Comte afirmava a necessidade de uma política moderna que fosse positiva, incluindo nessa política o respeito escrupuloso e cuidadoso pelas religiões antigas e por seus papéis históricos; sendo francês, Comte indicava aí nomeadamente o catolicismo. Essa regra foi cumprida pelos positivistas, mas, ao mesmo tempo, foi ridicularizada pela esquerda e “esquecida” pela direita católica; em qualquer caso, como a respeito de vários outros aspectos, ela foi objeto de desinformação.
A atuação dos positivistas no Brasil seguiu à risca essas orientações. O autor da bandeira nacional republicana, o vice-Diretor da Igreja Positivista do Brasil, Raimundo Teixeira Mendes (1855-1927), tinha em mente os valores indicados acima ao seguir a orientação comtiana e incluir o “Ordem e Progresso” na bandeira. Aliás, nas centenas de publicações da IPB, Teixeira Mendes e Miguel Lemos (1854-1917, Diretor da IPB) não se cansaram nunca de repetir esses valores e de refutar os sofismas daqueles que atribuem o militarismo ao Positivismo. (Aliás, exatamente para combater a desinformação antipositivista, uma dessas publicações está disponível para consulta pública e gratuita no portal Archive.org.)
O professor Benjamin Constant Botelho de Magalhães (1836-1891) – positivista por opção religiosa, filosófica e política, militar por necessidade, como se vê na monumental biografia que Teixeira Mendes escreveu sobre ele – era igualmente adepto dessas concepções. Assim, o ensino que ele realizava na Escola Militar e na Escola Politécnica era civilista, pregando o afastamento dos militares (como militares) da vida política nacional e ocidental. Exatamente por isso, Benjamin Constant e sua orientação foram objeto de ódio pelos militaristas, que pregavam a politização das forças armadas e a militarização da política. Entre esses militares, o mais famoso e importante foi o arquigolpista General Pedro Aurélio de Góis Monteiro (1889-1956), que, apoiando o golpe de 1930, apoiou também todos os militares golpistas dali por diante, em particular aqueles simpáticos ao integralismo (a versão nacional do fascismo) e que fizeram o golpe de 1964, como o antigo integralista Olímpio Mourão Filho (1900-1972). No regime autoritário de 1964, um dos seus apoiadores de primeira hora foi o economista “liberal” Roberto de Oliveira Campos (1917-2001); apesar de “liberal”, ele foi Ministro do Planejamento do governo autoritário e nunca deixou de chamar-se de “tecnocrata”.
Todas essas informações são públicas e disponíveis para consulta; só é necessário buscar as fontes originais, não as secundárias, terciárias, quaternárias... Uma informação mais difícil de obter, todavia, são as opiniões de Henrique Batista da Silva Oliveira e Alfredo de Morais Filho – como Benjamin Constant, positivistas por opção religiosa, filosófica e política, militares por necessidade – a respeito dos militares de 1964: para eles, quem deu o golpe de 1964 eram “fascistas” (não por acaso, chamavam Góes Monteiro de “Gás morteiro”). O tecnocrata autoritário Roberto Campos, que é objeto de admiração dos liberais e da nova direita brasileira – incluídos aí o Ministro da Economia Paulo Guedes, o astrólogo Olavo de Carvalho e o autor Rodrigo Constantino – era encarado como alguém sem patriotismo, um “entreguista”, que aliás até o fim de sua vida desejava vender o patrimônio brasileiro para os estrangeiros.
Todos os erros teóricos e históricos indicados acima provêm da (nova?) direita conservadora (neste caso, “católica” e “liberal”): não é por acaso que citam em profusão J. C. Oliveira Torres. Entretanto, é motivo de assombro, ou de ridículo, que repitam os mesmíssimos erros que a esquerda sempre gostou de imputar ao Positivismo e aos positivistas. Embora seja possível incluir aí Marilena Chauí e Michel Löwy, um autor menos espalhafatoso foi o historiador paulista Sérgio Buarque de Hollanda (1902-1982), fundador do Partido dos Trabalhadores. Como já tive oportunidade de indicar e refutar, Sérgio Buarque repetiu todas as desinformações indicadas acima, com a espantosa inovação de pretender entender a obra de Augusto Comte melhor que o próprio Teixeira Mendes!
Olavo de Carvalho, Rodrigo Constantino e agora Rafael Salvi, entre outros, têm-se dedicado a imputar ao Positivismo os seus próprios erros: politização dos militares, aumento da violência na política, desprezo pelos aspectos morais e afetivos na vida sociopolítica, desprezo pela fraternidade e pela tolerância, instrumentalização do Estado por ideologias político-religiosas etc. Eles atribuem ao Positivismo a militarização da política, mas ao mesmo tempo apoiam um governo que se caracteriza exatamente por essa militarização e por um esforço de tecnocratização do Estado; aliás, fazem eco ao voto de extermínio dos positivistas proferido em 9.3.2020 por um dos filhos do Presidente da República. Infelizmente, tudo isso é apenas distração e desinformação; os golpes dirigidos contra o Positivismo e os positivistas serve apenas para (tentar) disfarçar a própria política antirrepublicana e anticívica seguida pela direita nacional.
Gustavo Biscaia de Lacerda é positivista ortodoxo e Doutor em Sociologia Política.