| Foto: Marcos Oliveira/Agência Senado
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Leitor de Comte no original e na íntegra repetidas vezes, Alain abundava em razão: para conhecê-lo, é preciso no original e lê-lo por inteiro: os seis volumes do Sistema de Filosofia Política, os quatro do Sistema de Política Positiva (que inclui os opúsculos juvenis), o Catecismo Positivista, o Apelo aos Conservadores, o Discurso sobre o Espírito Positivo e a Síntese Subjetiva; ao todo, catorze volumes. Cumpre meditá-los, relê-los se preciso, e desenvolver um esforço de meditação ao qual resiste, com freqüência, o seu estilo abstrato. Disto tudo, há tradução para o português apenas do Apelo, do Catecismo, dos dois primeiros capítulos da Filosofia e do Discurso sobre o espírito positivo.

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Quem pretender capacitar-se do Positivismo, deter-se-á, ainda, nas obras dos seus melhores explicadores, como Laffitte, Teixeira Mendes, Lagarrigue, Robinet, L. Levy-Bruhl,  Ducassé, e tantos outros que, antes de discorrerem sobre o pensamento comteano, cumpriram a exigência óbvia de conhecerem-no diretamente na sua fonte.

Tal conhecimento falece a muitos intelectuais brasileiros, que não se coíbem de pontificar sobre obra que não leram. Falam do que ignoram ou do que apreenderam apenas superficialmente; repetem de segunda, terceira, quarta mãos o que encontram em autores que repetem por sua vez a outrem ou que, se se abeberaram nos originais de Comte, condicionam, com sua interpretação pessoal, a de quantos tomam-nos por fonte. Não basta louvar os méritos de seja lá qual crítico e macaqueá-lo: nada dispensa da leitura das obras de que se fala, seja lá qual for a obra e o autor correspondente. Somente dentro desta condição produz-se intelectualmente a sério e fora das distorções provocadas pelo intuito de golpear uma doutrina, com razão ou sem ela, e das resultantes da parcialidade.

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Enquanto o exercício da inteligência limitar-se à repetição de terceiros, enquanto a vida intelectual traduzir-se por abordar um autor sem o seu conhecimento direto, enquanto o ataque representar desiderato e não resultado, enquanto a ideologia balizar a cognição, o resultado só pode ser o da ignorância sistematizada e o dos erros à guisa de expressão dos fatos ou de interpretação perspicaz. Enquanto for assim, acerca de Comte e de qualquer outro autor, não contribuirá o Brasil para a elevação da cultura intelectual, mas fortalecerá o pedantismo como critério do conhecimento e da reflexão, vale dizer, para o aviltamento de ambos.

Enquanto for assim, intelectuais, professores, estudantes, público em geral, persistirão a pensar ser o Positivismo o que ele, na verdade, não é; manter-se-ão na ilusão de certos lugares-comuns e de certas idéias superficiais, grosseiras, estúpidas, falsas ou tolas, que sobre ele circulam no Brasil (por exemplo: Comte ensandeceu ao final da sua vida; o Positivismo é ideologia de manutenção da "ordem" burguesa", “cientista” e tecnocrata; o liberalismo econômico aliou-se-lhe; o Positivismo fundamentou o nazismo; é fatalista e autoritário; os positivistas impediram a fundação de universidades no Brasil).

Em muitas universidades e cursos livres ensina-se anti-positivismo e viciam-se gerações seguidas, inculcando-se-lhes aversão ao Positivismo, a um Positivismo falsificado, em que ao próprio termo positivismo imputam-se diferentes significados, frequentemente sem relação com a obra de Comte, o que aumenta a desinformação com a confusão semântica. Publicistas e mentores intelectuais em voga, e seus discípulos, incorrem nos mesmos vícios.

Enquanto for assim, todos eles prosseguirão ignorando temas como o conceito de positividade, de previsão racional, de Humanidade, de síntese subjetiva, de filosofia primeira, de estática e dinâmica, da preponderância do sentimento, de governo republicano, de liberdade espiritual, da sociologia como totalidade do conhecimento, de educação integral. Estes e outros podem contribuir para alargar as dimensões da reflexão nacional, com temas inexplorados porque geralmente ignorados. Sequer o significado de ordem e progresso sabe-se corretamente, não obstante o dístico do pavilhão nacional!

Enquanto for assim, continuaremos como o país que, devendo ao Positivismo benefícios que negam somente seus caluniadores e os mal informados, mostra-se o mais ingrato quanto a ele; seremos o país que, dispondo de fartos materiais com que se aquilatar as suas aplicações à vida social, é o em que o seu conhecimento equivale ao dos (maus) manuais escolares de filosofia. Enquanto for assim, cultivaremos calúnias,  ignorância, desinformação e ideologia, porém não a verdade, a sabedoria e a justiça; persistiremos na cultura da ignorância, em vez de elevarmo-nos ao conhecimento da verdade pelo caminho árduo do esforço intelectual honesto.

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O empenho de muitos em golpear o Positivismo, de boa-fé ou sem ela, bem como a capacidade dele, de suscitar adesões e aplicações, equivalem ao reconhecimento de que ele oferece muito ao pensamento humano, de que porta mensagem rica e aliciante: por isso desperta antagonismos, ataques e a necessidade de adulterá-lo para feri-lo. É a forma como os seus críticos reconhecem-lhe, sem o confessar, a profundidade filosófica, a envergadura intelectual, o valor no pensamento humano, o certeiro das suas demonstrações, o convincente das suas propostas. É forma, toda própria, como eles homenageiam-no.

Arthur Virmond de Lacerda Neto é mestre em História do Direito, autor de “A república positivista”.