A composição básica e majoritária do petróleo cru, originário da decomposição multimilenar de animais e plantas no solo sob calor e pressão, é de hidrocarbonetos ou combinações de carbono e hidrogênio (quimicamente, CxHy) então designadas de parafinas, olefinas, naftenos e aromáticos. Isto permite, mediante os acoplamentos técnicos de processamento, sejam as destilações atmosférica ou sob vácuo e variantes de craqueamento (quebra) catalítico ou não, obter até 47% de gasolina e 23% de diesel e óleo de aquecimento, dentre outros produtos. É uma química razoavelmente complexa. Um dos mais simples derivados do craqueamento do petróleo, o etileno (C2H4), é precursor de dezenas de derivados, dentre os quais as garrafas pet, borracha sintética, óxido inseticida, solventes para tintas e vernizes e plastificantes, além de atuar como hormônio de amadurecimento de frutas. Em sentido mais amplo, nada se perde, tudo se transforma a partir do petróleo, razão pela qual, muito apropriadamente, é chamado de “ouro negro” e é a commodity mais importante do mundo, por conta do quantitativo e valor estratégico. Seu craqueamento se reparte, sem perdas, entre gás de cozinha (GLP), gasolina, nafta, querosene, diesel, gasóleos leves e pesados, óleos lubrificantes, betume, coque e resíduo asfáltico.
Fixemo-nos em uma linguagem universal e dolarizada. O barril de petróleo (159 litros) tem se situado, no início deste mês, em torno de US$ 61,50, ou pouco menos de R$ 250. De acordo com a NYMEX, as mais drásticas e recentes oscilações de preço do petróleo, para mais e para menos, se deram em meados de outubro de 2018 (US$ 76) e fim de janeiro de 2019 (US$ 43). Estas cotações valem para o óleo brent, de maior valor por conta de sua baixa densidade e menor conteúdo de enxofre.
Robert Rapier, na Forbes, afirma que a produção mundial de petróleo em 2018 esteve na ordem de 95 milhões de barris/dia, ou seja, em torno de 35 bilhões de barris/ano. Rekha Khandekwak lista como os maiores produtores mundiais de petróleo os Estados Unidos (18%, nos estados do Texas, Dakota do Norte, Novo México, Oklahoma e Alasca), seguidos da Arábia Saudita (12%) e Rússia (11%), à frente de Canadá, China e Iraque, todos empatados em 5%. Irã e Emiratos Árabes Unidos vêm a seguir, ambos com 4%. E eis que, na nona e décima posições, aparecem o Brasil e o Kuwait, cravados nos mesmos 3%. A produção anual mundial de petróleo, em dados de 2018, se situou em fantásticos 36 bilhões de barris.
Márcio Nascimento, professor da UFBA, resume magistralmente a história do petróleo brasileiro, um sonho de consumo (e consumado) de nosso ícone das letras, Monteiro Lobato. O ouro negro jorrou pela primeira vez do poço L-163 na Boa Terra (no bairro soteropolitano de Lobato), em 21 de janeiro de 1939, pelas mãos do engenheiro geógrafo Manoel Inácio Bastos, financiado pelo corretor Oscar Salvador Cordeiro, da Bolsa de Mercadorias da Bahia. Incontinenti, o presidente Getúlio Vargas, com a bandeira política “o petróleo é nosso”, determinou, pelo Decreto 3.701/1939, a nacionalização da reserva (pré-monopólio) e, insensivelmente, proibiu o acesso aos dois descobridores. Houve mais prospecções e, em maio de 1941, jorrou petróleo economicamente explorável em Candeias, no Recôncavo Baiano. Em outubro de 1953 deu-se, então, a criação da Petrobras, pela Lei 2.004/53), por ações e ato do mesmo presidente da República.
Que não se permita que a dinheirama entrante caia nas mãos ou bolsos de gestores ou intermediários do calibre dos meliantes que se locupletaram durante o maior tsunami de corrupção que o Brasil já viveu
O petróleo no poço ou nas bombas, se refinado, é uma notável riqueza. Todavia, desastres em sua manipulação impingem danos imediatos ambientais e financeiros de grande magnitude. Nove estados brasileiros e 110 de seus municípios, desde o norte maranhense até o sul da Bahia, foram e ainda estão parcialmente manchados, entre o ínício de setembro e fim de outubro, graças a um derramamento (acidental ou criminoso) de petróleo comprovadamente venezuelano sob transporte de um grande navio petroleiro grego. Cerca de 4 mil toneladas de resíduos já foram recolhidas das praias, mangues e estuários de rios. Felizmente, uma parcela apenas pequena do vazamento atingiu o Santuário de Abrolhos, defronte a Caravelas, no sul baiano. O Brasil não foi preventivamente avisado nem pelo capitão do cargueiro nem pelas companhias contratantes do serviço marítimo. Pior do que o crime, somente a impunidade.
Os campos petrolíferos do pré-sal descobertos pela Petrobras em 2006 se distribuem dentro da faixa de nosso mar continental defronte aos estados do Rio de Janeiro e São Paulo, mas se estendendo até o Espírito Santo, Paraná e Santa Catarina. Não obstante um viés de especulação, estima-se que o pré-sal (cuja camada de sal que antecede a rochosa petrolífera se situa entre 200 metros e 2 quilômetros) encerre algo em torno de 80 bilhões de barris e gás. Se totalmente explorados – o que se antevê com o primeiro leilão do pré-sal de 6 novembro, e que já conta com uma dúzia de concorrentes –, converterão o Brasil em um dos quatro maiores produtores de petróleo no mundo. Segundo a Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP), o pré-sal já contribui com 60% de todo o petróleo e gás natural do país. O gás natural sempre acompanha o petróleo ejetado de uma jazida, seja em solução ou como fase gasosa, e contém, em média, uns 70% de metano, gás combustível muito nobre. Uma virtude de relevo do petróleo do pré-sal é sua qualificação: 35,5% leve (>31oAPI), 53,3% médio (entre 22o e 31o API) e apenas 11,2% pesado (< 21º API).
A Lei 5.478/19, já sancionada pelo presidente da República, dispõe sobre o rateio dos ganhos com o leilão do pré-sal. Dos esperados R$ 100 bilhões a R$ 110 bilhões, um terço vai para a Petrobras e, dos restantes dois terços, 67% ficam com a União, 15% vão para os estados e Distrito Federal, com outros 3% para aqueles que são confrontantes na plataforma continental, e 15% para os 5.570 municípios. Dentre estes, as capitais do Rio e São Paulo serão os maiores beneficiados, na faixa de 0,3% do total do bolo municipal. A manter-se o positivo viés de outros leilões que se deram com surpreendentes ágios, a centena de bilhões de reais cogitados do pré-sal deverá sofrer um substancioso incremento.
Todos os 195 países do mundo se ajustam ao preço internacional do petróleo. Então, o que se cobra nos postos de abastecimento para a gasolina e diesel (idem para o querosene de aviação) é reflexo direto do que as refinadoras exigem dos distribuidores para a entrega sob o alegado custo de produção, do que o governo impõe de impostos e a margem de lucro na compra entre motorista e posto.
Postas estas considerações, vejamos como a gasolina (e o diesel) entram no tanque dos motoristas brasileiros em comparação com seus colegas estrangeiros. Para facilitar o entendimento, e usando referências internacionais, abdiquemos da referência de volume para combustíveis (1 galão, ou 3,785 litros) e nos atenhamos ao litro e seu preço dolarizado convertido em reais. A gasolina mais barata do mundo é a da Venezuela, a incríveis 4 centavos de real. Mas lá há o ditador Maduro, com todas as suas consequências nefastas, dentre as quais as centenas de milhares de refugiados. A mais cara, a R$ 9,50 o litro, é a de Hong Kong, ora se engalfinhando contra o aparato policial comandado pela China (mais) continental. Ainda nas feiras barateiras está o Irã (que não é árabe, mas que tem 89% de xiitas, e cuja língua oficial é o persa ou farsi), a R$ 1,21/litro. Seus vizinhos árabes – Arábia Saudita, Emirados Árabes e Catar, onde tudo é comandado por reis, sheiks e emires, com volumosa sinecura de príncipes, e onde o povo mais humilde se locomove com camelos – têm preços entre R$ 2,12 e 2,41. Meno male.
Entre nossos hermanos vecinos, a Bolívia, apesar da recondução de Morales, está bem, com R$ 2,25/litro. O Equador estaria ainda melhor com os R$ 2,03, mas houve a recente semiguerra civil nas ruas, refutando o aumento brusco de 130%. Na Argentina, apesar da quente campanha eleitoral presidencial e a eterna busca (ora consumada) da ressurreição do peronismo, R$ 3,70. Por aqui, Jair Messias tem o (muito bom) Mourão para qualquer necessidade; lá, Fernández vai amargar uma populista Kirchner em todas as circunstâncias. O Paraguai e o Brasil registram empate técnico entre si e com o Canadá, de R$ 4,33 e R$ 4,441. De fato, em outubro deste ano alguns postos em Curitiba se mantiveram na faixa média de R$ 4/litro de gasolina, enquanto em Guarapuava (a 280 km da capital), a gasolina, o etanol anidro e o diesel S10 (enxofre reduzido) estavam cotados, respectivamente, em R$ 4,50, R$ 2,90 e R$ 3,40. No Chile, chacoalhado pelo anúncio do presidente Piñera de emendas enérgicas à Constituição, incluindo a redução do número de deputados e senadores, e por uma violenta manifestação popular com algumas mortes, o preço é um pouco maior, de R$ 4,76.
Na Inglaterra e Noruega, que há décadas também exploram petróleo nas profundezas do Mar do Norte, os preços são relativamente altos: R$ 6,40 e 7,40 o litro. Na França (com 58 usinas nucleares para energia e nenhum acidente), Itália e Holanda, onde inexiste um único poço de petróleo, a gasolina custa entre R$ 6,60 e R$ 7,30. Na Alemanha, que tem 17 usinas nucleares, parte delas em desativação, R$ 6,20 por litro de gasolina. Na pequena Israel, R$ 7,30. Segundo o portal Zion.com, um único dos jatos modernos de proteção aérea do país consome cerca de 40 barris de querosene a cada voo. Com as escaramuças diretas ou indiretas com seus vizinhos árabes e o Irã, há mais de duas décadas 99% do petróleo necessário a Israel é importado. Os provedores israelenses tradicionais têm sido Angola, Colômbia, México, Egito e Noruega e, mais recentemente, Rússia, Cazaquistão e o volátil Curdistão, região formada pelo norte do Iraque e sudoeste da Turquia.
Encerramos o comparativo com a Rússia e os Estados Unidos, dois dos maiores produtores mundiais, cujas gasolinas custam R$ 2,80 e R$ 3,20 o litro. O componente demográfico se nos parece da maior importância, pois define o status de cada país como produtor-consumidor-exportador ou importador. Estados Unidos, Rússia, Brasil e Arábia Saudita têm populações de 327 milhões, 146 milhões, 208 milhões e 33 milhões de habitantes. Com as alvíssaras da descoberta do pré-sal, o leilão de 6 de novembro e os ganhos astronômicos, o Brasil certamente ingressará no privilegiado G4 do petróleo. As perguntas que não calam são: por que o brasileiro tem de pagar R$ 4 por litro de gasolina (só em tese “baratéavel” com seus 27% de etanol a R$ 2,75/litro), ou seja, 25%, 42% ou 72% a mais que nos Estados Unidos, na Rússia ou na Arábia Saudita? Que economia de mercado é essa? É questão para a reforma tributária já em curso? Ao povo das classes média, menos favorecida e desfavorecida não interessa que o governo e legisladores simplesmente troquem os nomes de impostos; é vital que os preços finais se reduzam.
Nos Estados Unidos, segundo a Energy Information Administration, a distribuição dos componentes para o preço final da gasolina regular é razoavelmente diferente da nossa: o componente majoritário advém do próprio petróleo cru, com 60%, seguido de 16% de impostos federais e estaduais, 13% de custos de refino e lucros, e 12% de distribuição e marketing. Para o óleo diesel, os números são semelhantes aos norte-americanos. Aqui o diesel já envolve, na B11 em voga, a adição de 11% de biodiesel (custando em média R$ 3,075 no último leilão da ANP/Petrobras, em outubro).
- Sinal verde para o megaleilão (editorial de 16 de outubro de 2019)
- Quem paga a conta do petróleo no litoral do Nordeste? (artigo de Evandro Grili, publicado em 2 de novembro de 2019)
- Evolução do pré-sal e mudanças na indústria do petróleo e gás natural (artigo de Fabrízio Nicolai Mancini, publicado em 27 de outubro de 2019)
Governos não produzem renda; sobra-lhes, então, gastar bem ou mal o que arrecadam de impostos. Atenhamo-nos ao comparativo Brasil-Estados Unidos no quesito de impostos sobre o mais consumido dos combustíveis: 46% a 16%. A conclusão é óbvia, pois nos EUA quem opera os negócios do petróleo são as gigantes privadas, tais como Exxon-Mobil, Chevron, ConocoPhillips, BP e Royal Dutch Shell. Aqui, a Petrobras segue definida como uma empresa estatal de economia mista, ou seja, sustentada pelo capital público e privado. Mas já há nuvens prenunciando sua possível privatização, porque este monopólio dá sinais de transição. O poder e capital público detém a maioria das ações ordinárias e, portanto, pode nomear e demitir o presidente e diretores da empresa. Mas há as ações preferenciais. O capital privado está mais interessado nos lucros auferidos e a distribuição dos dividendos. Em ordem descrescente de controladores, temos a União, com 28,68%; BNESPar, 8,37%; BNDES, 6,87%; Caixa Econômica Federal, 2,31%; BlackRock Inc., 2,15%; Fundo PIS/Pasep, 0,05%; e todos os demais somam 51,58%. Como o perfil de acionistas é bastante heterogêneo nas categorias de pessoas jurídicas, físicas e institucionais, sendo mais de 287 mil, este rateio desperta muita curiosidade. Por exemplo, a BlackRock Inc nova-iorquia é uma das maiores gestoras de ativos do mundo. O que se oculta em “outros” é assunto para especialistas em bolsas de valores. O bom gaúcho Getúlio, se vivo, faria uma emenda do tipo “O petróleo (não) é (bem) nosso!”
O gás natural (maiormente metano, combustível muito nobre; C2H6), segundo Carlos Langone, da FGV, custa por aqui US$ 13 por metro cúbico, contra US$ 6,50 na Europa e apenas R$ 3 nos EUA. Segundo ele, a culpa é da Petrobras, que controla tanto a oferta quanto a logística, e as empresas privadas não têm como distribui-lo por falta de gasodutos. Cui prodest? Quem ganha com isso?
Last but not least, dois (dentre muitos outros) apelos à Presidência da República, um macro e outro micro. Que não se permita que a dinheirama entrante caia nas mãos ou bolsos de gestores ou intermediários do calibre dos meliantes que se locupletaram durante o maior tsunami de corrupção que o Brasil já viveu, sejam políticos, megaempresários, dirigentes de partidos, doleiros, genéricos e similares. Que fiéis correligionários eleitos se atenham aos deveres patrióticos de representação parlamentar como senadores, deputados federais ou vereadores, pois na tela da urna eletrônica só constavam dois nomes, sem nenhuma menção a um trio de vice-presidentes.
José Domingos Fontana é professor emérito da UFPR.
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