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Pragmatismo, realismo, cara de pau, desfaçatez e realpolitik não foram inventados pelo ex-presidente Lula quando decidiu cortejar o seu arqui-inimigo Paulo Maluf e, em troca, receber o apoio para o seu candidato à prefeitura de São Paulo, Fernando Haddad. Ambiguidades, eufemismos e truques verbais, geralmente cínicos, fazem parte da moral ibérica que ao longo de séculos permeou nossos padrões de exigência, permitindo a convivência entre o decente e o indecente. Sobretudo na esfera política.

Em 1945, Luís Carlos Prestes não titubeou em apoiar seu algoz, Getúlio Vargas, que o manteve no cárcere quase uma década e ainda assinou a expatriação da sua mulher, Olga Benário, para ser entregue à Gestapo na Alemanha e, em seguida, ser assassinada em um campo de concentração. Carlos Lacerda combateu ferozmente João Goulart, tentou impedir a posse de JK, foi o inspirador da ditadura de 1964 e, não obstante, aliou-se a ambos para criar a Frente Ampla e interromper o ciclo de presidentes-generais-ditadores.

José Sarney foi um dos principais representantes do regime militar no Congresso e, mesmo assim, Tancredo Neves o escolheu como companheiro de chapa para derrotar no Colégio Eleitoral o adversário Paulo Maluf, representante da linha dura. A bênção deste mesmo Maluf ao candidato paulistano de Lula não é extraordinária – ao contrário, é bem ordinária. Comum. Surpreendeu apenas aqueles que ignoram nosso acervo histórico.

Feito notável, admirável, merecedor de louvores em prosa e verso foi a renúncia da pré-candidata a vice de Haddad, a deputada Luiza Erundina (PSB-SP), que teve a suprema audácia de abrir mão da indicação, ultrajada pelo apoio que sua chapa receberia de uma figura que tanto abomina. Com a candura e a inteireza que a caracterizam, porém sem apelar para adjetivos, a ex-prefeita deixou claro que não se sentiria à vontade com o apoio de alguém que sempre combateu, antípoda integral.

Abdicar e renunciar, sobretudo por coerência com valores morais, constitui um ato excepcional em uma sociedade onde impera o vale-tudo para chegar e manter-se no poder. Erundina não quis trair os seus tradicionais eleitores e trocou os holofotes que a acompanhariam no palanque da mais importante disputa do próximo pleito para manter-se como uma das mais diligentes e respeitadas deputadas.

Em um destroçado cenário partidário dominado pela devassidão, pela troca de favores e pelo despudorado corporativismo, Luiza Erundina estabeleceu um novo paradigma. Com referências tão marcantes como essa, o eleitor, em algum momento, perceberá a aberração dos partidos de aluguel, as farsas que se escondem atrás das siglas e programas partidários, e o faz de conta que domina as entranhas de uma democracia incapaz de enxergar as deformações que sofre.

Erundina prestou enorme favor a uma sociedade moralmente desassistida. O resultado imediato de sua inédita desistência deverá refletir-se nos cuidados que o seu ex-futuro companheiro de chapa, Fernando Haddad, adotará na escolha do vice. O ex-ministro da Educação foi reprovado no pré-vestibular, mas poderá recuperar-se com facilidade se souber converter o episódio em oportunidade para assumir-se como efetivo representante da nova geração de servidores do povo.

Alberto Dines é jornalista.

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