Essa mutação constante das regras eleitorais era e é indesejável. Segurança jurídica e proteção à confiança são fundamentais para o processo eleitoral
Há certa confusão no debate em torno da Lei da Ficha Limpa. A recente e muito lamentada decisão do Supremo, considerando inaplicável a nova lei para as eleições de 2010, contribuiu para essa desorientação. Não é novidade. As discussões jurídicas que envolvem Direito Eleitoral são quase sempre conturbadas pela inserção de argumentos políticos. A opção política já foi feita pelo Congresso Nacional, embalado pela opinião pública. A LC n.º 135/2010 foi aprovada e está em vigência. Eventual contrariedade quanto ao mérito do projeto deve ser enviada ao Legislativo. É com essa restrição que merece análise a última decisão do Supremo.
Havia um tempo em que a legislação eleitoral era modificada a cada eleição. Essa mutação constante das regras eleitorais era e é indesejável. Segurança jurídica e proteção à confiança são fundamentais para o processo eleitoral. O Brasil tem uma história rica em casuísmos eleitorais. Por isso o legislador constituinte aprovou um dispositivo que só autoriza a aplicação da nova legislação nas eleições que ocorram um ano depois do início da vigência (art. 16 da CF). Era só esse o debate do STF encerrado semana passada; se a Lei da Ficha Limpa havia alterado ou não o processo eleitoral. Entendeu-se que sim. E a decisão foi correta. Aplicou-se o princípio da anterioridade. Foi resolvido o primeiro ponto controvertido da nova lei complementar. O primeiro, mas o menos importante. O próprio ministro Fux, responsável pelo desempate, consignou "a aspiração legítima da nação brasileira, mas não pode ser um desejo saciado no presente, é uma lei do futuro". O fato de não ter aplicação em 2010 não pode ser tomado com uma frustração. O principal é garantir a aplicação da lei para as próximas eleições.
E para que a lei valha para o futuro, o Supremo deverá afastar a alegada inconstitucionalidade por ofensa ao princípio da presunção de inocência (art. 5.º, LVII). É o ataque jurídico que a lei sofre em seu principal avanço, ao reputar inelegíveis todos que forem condenados em processo criminal ou de improbidade, independentemente do trânsito em julgado (art. 1.º, I, "e", "j" e "l" da LC 64/90). Embora o STF não tenha analisado diretamente esse aspecto no último julgamento, alguns ministros já sugeriram a constitucionalidade da nova lei, como está claro na manifestação do novo ministro Luiz Fux.
Aqui no Brasil a exigência de trânsito em julgado sempre impediu, na prática, que os candidatos já condenados (em segunda instância, inclusive) fossem considerados inelegíveis. Antes da nova lei, só depois da última decisão (geralmente do próprio STF) é que se impunha a inelegibilidade. Agora basta a decisão de órgão colegiado. Nesse ponto está o avanço fundamental da nova lei para diminuir o inegável déficit moral da disputa eleitoral. Como já reconheceu o professor René Dotti, juridicamente a lei é sim constitucional; não fere a presunção de inocência.
Na maioria dos países não há vinculação entre presunção de inocência e trânsito em julgado, como prevê a Constituição Federal de 1988. Mas o importante é que a presunção de inocência, tal qual prevista aqui (própria do direito criminal), não irradia seus efeitos ao Direito Eleitoral, informado por outros princípios que, na necessária ponderação, devem prevalecer. A própria Constituição Federal determina que a legislação complementar leve em consideração a vida pregressa do candidato (art. 14, § 9.º). E vida pregressa não é conceito que se conforme apenas com as condenações criminais com trânsito em julgado. No Direito Eleitoral vale, sobretudo, o princípio da precaução, de aplicação indispensável à criação de regras de inelegibilidade.
A escolha do Congresso foi acertada. O Supremo deverá confirmar a constitucionalidade. A última decisão do STF permitirá uma aplicação amadurecida da Lei da Ficha Limpa. Não há, enfim, sentido nas lamentações.
Luiz Fernando C. Pereira, doutor em Direito pela UFPR, coordena a pós-graduação de Direito Eleitoral do Unicuritiba.
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