O protesto dos entregadores vinculados a plataformas digitais de intermediação do trabalho do dia 1.º de julho trouxe à tona a dura realidade destes trabalhadores que ganharam visibilidade no período de necessário afastamento social. O “breque” dos entregadores, como chamaram, trouxe propostas bastante simples, claras e justas, porém sem o devido espelhamento na lei posta, escancarando a problemática da insuficiência normativa para esse novo tipo de relação de trabalho característico do século 21.
Estes novos trabalhadores se somam a tantos outros localizados na chamada “zona cinza” do Direito do Trabalho, uma zona intermediária entre o trabalho formal, aquele subordinado, e o trabalho autônomo. São vítimas de um cruel sistema binário que enxerga e estabelece proteções somente ao trabalhador subordinado, com contrato formal regido pela Consolidação das Leis do Trabalho, e relega à própria sorte mais da metade da força de trabalho do Brasil.
Lembre-se que essa superação da dicotomia prevista na lei trabalhista é defendida pela própria OIT em sua recomendação 204, que prescreve o afastamento dessa política do tudo ou nada.
A inadequação regulatória fica latente no próprio rol de propostas trazidas pelos trabalhadores: em nenhum momento se pleiteia o reconhecimento do vínculo empregatício ou direitos deste característicos, como FGTS ou 13.º salário, mas o que se busca são direitos que próprios da realidade da categoria, como o fornecimento de equipamentos de proteção, auxílio acidente, política de preços mais justa e transparente, transparência no sistema de avaliação e de bloqueios.
Aliás, a própria forma de organização coletiva já demonstra a disrupção desta relação. Os trabalhadores da era industrial, chamados de chão-de-fábrica, realidade para a qual a lei atual foi construída, antes facilmente reunidos por estarem em um mesmo local, eram representados por meio de uma estrutura sindical (que vem ruindo depois do fim das fontes de financiamento obrigatório) e que já se mostrou incapaz de formatar contramodelos válidos para a negociação.
Atualmente estes trabalhadores da era digital, caracterizados pela dispersão natural da internet, lutam contra uma tendência de ausência de cooperação (já que cada trabalhador neste modelo é uma “empresa em si mesmo”), reunindo-se por meio das chamadas “ferramentas suaves de organização”, blogs, bate-papos e principalmente aplicativos de mensagens. As pessoas passam a se reunir em torno de causas e interesses em comuns e não mais em torno de lideranças que venham a ditá-los.
A inexistência de resposta satisfatória na lei para a proteção destes trabalhadores também acontece em razão dos novos direitos criados à imagem das novas relações que jamais poderiam ter sido imaginados antes desta década. É o caso do direito à autodeterminação informativa do qual deriva o direito reputacional digital. Os trabalhadores que normalmente se vinculam a estas plataformas por contratos ditos “de adesão”, ou seja, sem negociação, necessitam de livre acesso aos critérios de cálculo dos valores pagos assim como aos critérios das avaliações digitais, novo direito de personalidade que se confunde com a sua imagem e reputação pessoal no ambiente virtual. O Parlamento Europeu, assim como a própria LGPD brasileira, em seu artigo 18, já permitem inclusive a portabilidade desta reputação entre plataformas.
A definição de uma legislação apropriada à categoria é necessária até mesmo para que se tenha condições de definição de políticas públicas para promoção do trabalho decente. As pesquisas acadêmicas divulgadas que dão conta das remunerações e tempo de trabalho são imprecisas pois se baseiam, na sua maioria, em relatos pessoais (muitas vezes colhidos por telefone ou internet) de um número limitado de trabalhadores. Há, neste sentido, a necessidade da criação de um cadastro oficial que concentre essas informações de forma precisa (tais como o Caged ou a própria Previdência).
A inexistência de legislação adequada traz prejuízos não só aos trabalhadores que ficam desprotegidos, como também à sociedade, às empresas de tecnologia e aos contratantes, eis que todos estão diante de uma relação juridicamente insegura (lembre-se que recentemente uma decisão da Justiça do Trabalho determinou o vínculo entre o trabalhador e o restaurante).
Por fim, não esqueçamos de nosso papel nesta relação (enquanto classe média que utiliza os serviços). A reorganização do processo produtivo e fragmentação da relação tradicional em micro-relações que incluem quatro atores diferentes - trabalhador, plataforma, restaurante e requerente final – deve nos fazer ter consciência que, em última análise, também somos beneficiários finais do trabalho alheio e, em vez de pagar 40 reais na pizza, talvez fosse mais justo pagar 44... com encargos.
André Gonçalves Zipperer, advogado, doutor em Direito. Autor do livro “A intermediação de trabalho via plataformas digitais: repensando o Direito do trabalho a partir das novas realidades do século XXI”, pela editora LTr. É Professor da pós- graduação em Direito do Trabalho da Universidade Positivo.