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A Filosofia – ou, como iremos ver, o que se entende por Filosofia – anda bastante popular. Genericamente isso pode ser tanto bom quanto ruim. Pode ser bom porque mesmo tendo um contato superficial, ele é inicial e servirá de trampolim para o contato com as obras de filósofos clássicos e de porta de entrada para a reflexão verdadeiramente filosófica. Ruim porque pode ser que nada disso aconteça e a versão água-com-açúcar passada por algum divulgador da Filosofia permaneça na mente dos que consomem esse material de divulgação.

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E essa questão é bem mais importante do que parece, tanto que me propus a escrever um livro, uma exótica (quando comparada às obras semelhantes) introdução à Filosofia, que tem por mote justamente dizer o que a Filosofia não é em vez do tradicional “o que é a Filosofia” (o leitor pode ficar tranquilo, a segunda parte da obra é dedicada a essa questão): O que a Filosofia não é e o que fizeram dela no Brasil (Santo André: Editora Armada, 2023).

Devido a sua natureza, a Filosofia inevitavelmente ocupa o topo de uma eventual hierarquia de conhecimentos humanos.

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A Filosofia ocupa um lugar especial na ordem dos conhecimentos humanos, lugar único, eu diria. Não exatamente pelo chavão de que ela seria “a mãe de todas as ciências”, mas por mais que isso: devido a sua natureza, a Filosofia inevitavelmente ocupa o topo de uma eventual hierarquia de conhecimentos humanos. Uma das razões para isso é o zelo com o qual a Filosofia pensa a si mesma, área que os filósofos mesmos batizaram de “metafilosofia”. Enquanto dificilmente químicos, físicos ou médicos gastam mais que uma página discutindo o que é física, química ou medicina, interessa e muito aos filósofos delimitar o que a Filosofia é e explicitar sua natureza, algo que pode exigir bem mais que poucas páginas. E por mais incrível que possa parecer, não se trata de questão trivial, irrelevante ou, como muitos creem, que demonstra a completa inépcia da Filosofia como tipo de conhecimento ou escola de pensamento.

Outro motivo que mostra o lugar especial ocupado pela Filosofia, além do já citado, é que ao contrário da Física, da Química ou da Medicina, onde as pessoas podem passar suas vidas sem refletir a respeito delas (consultando médicos, químicos ou físicos quando necessário), é inevitável que todos nós tenhamos posicionamentos filosóficos, restando apenas a escolha entre estar ou não ciente de tais posicionamentos. É comum que as pessoas se descrevam, por exemplo, como mais teóricas ou mais pragmáticas, como “de humanas” ou “de exatas” ou que quando abordadas por um pedinte criem pequenas teorias para decidir se dão ou não uma esmola, enveredando por alguma teoria elementar sobre ética. Sem falar, é claro, no bombardeio ideológico perene em que estamos inseridos, com os diversos “ismos” oferecidos como alternativas salvíficas para os problemas da sociedade. Ou seja, todo mundo precisa saber muito bem o que a Filosofia é para poder argumentar e se defender das armadilhas postas, bem como para que seus posicionamentos filosóficos sejam bem digeridos e conscientes e não baseados nas observações de alguma estrela “filosófica” televisiva (o que no livro chamo de “filósofos de palco”).

É comum observarmos a confusão entre Filosofia e autoajuda, outro erro que deve ser debitado em grande parte da conta dos filósofos de palco, coaches e famosinhos de Instagram.

Há ainda uma função pedagógica na reflexão, tornando-a praticamente paradidática e servindo mesmo para aqueles que não têm o menor interesse por Filosofia, mas não querem deixar as abobrinhas ditas pelo seu professor – ou pelo professor dos filhos e sobrinhos – passarem batidas. O docente padrão de Filosofia, principalmente do ensino regular, provavelmente será o principal replicador dos lugares-comuns que considero urgente combater e motivaram a redação do livro: “filosofia é ser ‘crítico’”, “filosofia é debater”, “filosofia é pensar”, “filosofia é ‘filosofar’”. Em casos ainda mais extremos isso poderá vir temperado de ânimos à esquerda, como se a Filosofia fosse serviçal do pensamento ideológico revolucionário.

Além dos clichês acima citados, é comum observarmos a confusão entre Filosofia e autoajuda, outro erro que deve ser debitado em grande parte da conta dos filósofos de palco, coaches e famosinhos de Instagram (que a essa altura, descobri recentemente, já estão plagiando o mote do meu livro). Associar a Filosofia a frases de efeito, de profundidade aparente ou real, reduzindo a pobre Filosofia ao frasismo ou às frases de efeito destinadas a impressionar os colegas de firma mais incautos – livros como Sócrates para administradores ou Se Aristóteles fosse CEO da GM não me deixam mentir. Todas essas confusões são devidamente listadas, combatidas e refutadas no livro e a essa altura espero que o leitor já tenha se compadecido de mim e de qualquer estudioso aplicado de Filosofia, pondo-se em nosso lugar e chegando à óbvia constatação do quanto desagradável é observar a sua área de estudos reduzida a essa plêiade de bobagens.

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Por fim, o subtítulo da obra não pode passar despercebido, pois toca em outra classe de confusão que entorna a Filosofia: “e o que fizeram dela no Brasil”. O que fizeram da Filosofia no Brasil? Nesse ponto, minha crítica recai menos sobre os leigos, que apesar de serem vetores das confusões mencionadas carregam pouca culpa, e mais sobre acadêmicos e suas manias academicistas, com grau de culpa bem maior.

A Filosofia, como mostro na segunda parte do livro, tem por base o contato com o Real e a tentativa de explicá-lo e compreendê-lo. E nada é mais contrário a esse espírito definidor que o academicismo com suas cátedras isoladas, artigos revisados por pares (uma prática positiva, mas à qual a Filosofia não pode ser reduzida), torrentes de publicações para contar pontos nos órgãos de fomento, bacharelismo etc. O modo acadêmico de se fazer Filosofia no Brasil, importado em grande parte da França, contribui em larga escala para essa ideia de “filosofia das catacumbas” ou de filosofia como “exegese”, outro fetiche profundamente francês com seus fichamentos e redução da atividade filosófica a “trabalho com textos” (o que, frisamos mais uma vez, não é ruim em si, ocorre apenas que tal atividade também não explica o filosofar).

A Filosofia não é, portanto, boa parte do que se acredita que ela seja, tanto por parte de leigos quanto de acadêmicos, sendo urgente, portanto, um retorno ao real e ao concreto, como está na raiz grega da Filosofia tal como a conhecemos (ou deveríamos conhecer). Isso feito, como tentou empreender o filósofo Eric Voegelin, por exemplo, sobrará pouco para as versões pasteurizadas da Filosofia propaladas por filósofos de tela e de palco e pouco para as versões ideológicas impulsionadas pela maioria esmagadora dos acadêmicos.

André Assi Barreto é graduado em Filosofia (USJT) e mestre em Filosofia (USP), licenciado em História e Geografia. É professor, autor, palestrante, editor e tradutor. É autor de “Entre a ordem e o caos: compreendendo Jordan Peterson” (2021) e “O que a Filosofia não é e o que fizeram dela no Brasil” (2023).

Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]
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