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O que, afinal, é essencial?

Toque de Recolher no centro de Curitiba. (Foto: Geraldo Bubniak/AEN)

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Uma essência, em filosofia, é aquilo que caracteriza um determinado ente em particular e o identifica com aquilo que ele é, diferenciando-o dos demais. Quando um ente é privado de sua essência, ele deixa de ser o que é e torna-se outra coisa, alterando a relação que outros entes com ele mantêm. A essência de uma cadeira é a possibilidade de que alguém nela se sente. Ao ser retirada tal possibilidade, aquele conjunto de plástico, metal ou madeira pode ser chamado prateleira, enfeite, rack, lixo..., mas não é mais uma cadeira. Essa cadeira, sendo o que é, combina com o sofá, serve para que eu me sente enquanto escrevo este texto, adorna minha mesa de jantar, serve de cabide para minha jaqueta e de apoio para a mochila do meu filho: ela integra um sistema, o dos móveis e equipamentos que chamo de sala de estar.

Nas palavras de Mario Bunge, “quanto mais complexo for o sistema, mais numerosas serão suas qualidades essenciais”. Na medida em que os entes são organizados e recebem diferentes funções, suas características essenciais se ampliam. Minha cadeira, cuja essência inicialmente era a potencialidade de que alguém nela se sentasse, tornou-se, na dinâmica da sala de estar, cabide, enfeite, suporte. Alguém poderia objetar que tais características não são essenciais, mas acidentais. No entanto, uma essência diz respeito a um ser específico, e sua característica essencial é encontrada quando tomada em consideração dentro do sistema onde ele está inserido.

Os sistemas tornam-se mais complexos na medida em que mais entes colaboram para sua organização. O sistema de organização da minha sala de estar, que é relativamente simples, depende do funcionamento de sistemas mais complexos, como os estabelecidos nas empresas que fabricaram e venderam os entes que a formam. Tais empresas, por sua vez, funcionam em um sistema extremamente complexo, que é o da economia de mercado, cuja essencialidade encontra-se em suas leis de funcionamento, que impõem riscos e oferecem ganhos a milhões e milhões de empreendedores e trabalhadores em todo o mundo.

Quando tratamos de sistemas com elevado grau de complexidade, é extremamente difícil diferenciar características essenciais e acidentais. Algo interpretado como acidental, como a possibilidade de pendurar um casaco em uma cadeira, pode ser essencial para quem, movido por sua liberdade e gosto pessoal, procura por um destes móveis em uma loja. E a ausência deste elemento acidental pode fazer com que o fabricante que a ele não se atentar vá à falência. A cadeia de oferta e demanda, como um todo, depende desta indiferenciação, justamente porque a essencialidade de um determinado bem depende do uso que este receberá por parte de seu comprador.

Apenas a liberdade dos indivíduos, a partir de suas idiossincrasias e necessidades pessoais, empresta harmonia ao sistema econômico. É extremamente longo e tedioso o capítulo da história em que tentativas de regular e limitar tal liberdade, por parte de burocratas e planejadores de todos os tipos, termina em desabastecimento, desemprego, miséria e tirania.

Outro sentido da palavra essencial, desta vez no dicionário, é “aquilo que é necessário, indispensável”. Essa multiplicidade de sentidos da palavra acaba servindo de pretexto para burocratas e planejadores em sua sempre renovada vontade de dirigir as liberdades alheias. Em momentos de emergência (e burocratas sempre fomentam momentos de emergência), é extremamente tentador tomar as medidas mais disparatadas apenas para mostrar à opinião pública que algo está sendo feito e, com isso, legitimar o próprio poder. Há aí um elemento de voluntarismo: a crença de que apenas a vontade é determinante para a formação da realidade. Um exemplo disso é a eleição arbitrária de determinadas atividades econômicas ou a aquisição de itens de consumo como essenciais, que implica necessariamente na caracterização de imensas parcelas da economia na categoria do supérfluo, aquilo que se pode passar sem. Em situações como a presente, em que um desastre sanitário se encontra instalado sobre o Brasil e o mundo, os planejadores caíram em tal tentação.

O Decreto 565, publicado pelo prefeito de Curitiba na noite de sexta-feira, é uma amostra deste tipo de expediente. Ao reforçar as já draconianas medidas de exceção impostas em nome do controle da pandemia de Covid-19, tal documento – eivado de constitucionalidade, o que se nota pelo singelo fato de que as considerações que o justificam não citam, em nem um momento, a Constituição – determina que nos estabelecimentos comerciais aleatoriamente contemplados com autorização para funcionamento “é permitida apenas a comercialização de produtos essenciais (alimentos, bebidas, higiene e limpeza) para humanos e animais, devendo os demais setores serem isolados”.

Obviamente, os itens eleitos para comercialização são essenciais no sentido contido no dicionário: não é possível sobreviver sem alimentos, bebidas e itens de higiene e limpeza. No entanto, tal eleição aponta para o fato de que, para além da mera sobrevivência biológica “garantida” pela autorização conferida, algo daquilo que é essencialmente humano – a liberdade de escolha e gosto – é julgado como acidental e supérfluo, uma permissão a ser ou não concedida conforme os ditames de uma reles prefeitura. É como se, em nome de uma pretensa proteção da vida biológica, a liberdade que constitui a dignidade e a essência dos indivíduos pudesse ser bloqueada por fitas zebradas, cones, placas de proibido e coisas do tipo.

No que diz respeito ao funcionamento da economia, o impacto desta medida nada guarda de diferença com a produzida por ditadores ao longo da história: a diferença entre itens essenciais e supérfluos guarda consonância com a relação filosófica de essência e acidente em sistemas complexos, que é de delimitação extremamente difícil e cuja regulamentação requer uma quantidade de informações que não está à disposição de nenhum comitê de burocratas iluminados. A direção centralizada da economia, não importa sob qual pretexto, é impossível, pois impede a formação do sistema de preços – Mises, há um século, e posteriormente Hayek debruçaram-se sobre o problema. O dinheiro que flui do pretenso supérfluo ao dito essencial alimenta toda a cadeia de distribuição e produção, que é determinada apenas pela totalidade das escolhas dos indivíduos em todo o planeta. Ninguém tem legitimidade para alterar unilateralmente este estado de coisas.

Além disso, por detrás de restrições econômicas sempre há restrições de pensamento e comportamento. Dizer o que pode ou não ser comprado ou vendido é o mesmo que determinar o que os indivíduos podem ou não desejar como essencial para suas vidas, bem como o que fazer com seu tempo e com o fruto de seu esforço. A partir do momento em que o homem se relaciona com a natureza a partir do trabalho que a modifica, restrições econômicas e políticas são a mesma coisa: medidas de exceção que visam o fortalecimento do poder em detrimento da negação dos direitos naturais – e essenciais – do homem. O fato de tais restrições surgirem em um momento de emergência também não é novidade: todos os regimes que intervieram de maneira drástica no domínio econômico e moral o fizeram sob o mesmo pretexto.

E todos eles foram relegados ao lixo da história.

Rafael Pereira de Menezes é bacharel em Direito, mestre e doutor em Filosofia, servidor da Justiça Eleitoral, diretor de pesquisas acadêmicas no Instituto Federalista e professor de Ética, Filosofia e Direito Público no Centro Universitário Campos de Andrade.

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